segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

DESENVOLVIMENTOS PSICOMOTOR, COGNITIVO E LINGUÍSTICO

DESENVOLVIMENTOS PSICOMOTOR, COGNITIVO E LINGUÍSTICO
DE CRIANÇAS DA SEGUNDA INFÂNCIA
(TESTAGENS E OBSERVAÇÕES)



Relatório da prática com crianças
da segunda infância. Trabalho de conclusão
da disciplina Processos de Desenvolvimento I

1. Fundamentação Teórica

O percurso de desenvolvimento do ser humano é de especial interesse para a Psicologia, a ciência que se incumbe de estudar e esmiuçar o comportamento de nossa espécie.
Como área pré-paradigmática cujas investigações são embrionárias, a Psicologia busca a compreensão e o mapeamento dos processos que nos formam e, esta investigação, perpassa o escrutínio de nossas experiências relevantes, daqueles momentos que, de forma análoga, acabam por ser a postura dos tijolos que definirão quem somos, como nos percebemos e, principalmente, quais serão os formatos de nossos instrumentos de relação social.
Neste tocante, Helen Bee, na apresentação de seu livro O Ciclo Vital (1997), nos apresenta brilhantemente ao universo no qual penetramos, ao afirmar que
o estudo do desenvolvimento humano constitui um dos mais fascinantes dentro todos os assuntos. (...) o processo de se tentar compreender é pleno de indagações e enigmas maravilhosos, caminhos às cegas e saltos teóricos para frente.” (BEE, 1997, p. 15).

Testemunhar os primeiros passos de uma criança, suas primeiras palavras, a forma como, mais tarde, avança assustadoramente sobre o conhecimento amealhado e compartilhado em seu meio social; assistir sua potência descobridora do mundo, suas expressões de fascínio, encantamento, assombro, admiração e incompreensão de um mundo que nos envolve como se estivesse aí há milênios à espera (estático!) de nossas presenças, é sempre o ato de testemunhar pequenos e estupendos milagres: o milagre que somos.
Ao nos debruçarmos sobre o desenvolvimento do ser humano, adentramos a dimensão da compreensão dos fenômenos constituintes de nossas vidas em sua forma elementar. É um corte, uma pinçada de um momento particular que nos adultos se perde no emaranhado de subjetividades estabelecidas. Daí a importância do estudo do desenvolvimento infantil para a compreensão do ser humano completo, formado.
Nunca deixamos de nos desenvolver, isto é certo. Desde o nascimento até nosso fim, desenvolvemo-nos. Entretanto, são os pilares erigidos na infância que ditarão as trilhas que seguiremos. São aqueles moldes aos quais fomos submetidos quando ainda pequenas crianças que delimitarão nossas possibilidades, nossa compleição intra-psíquica.
O maior de todos os desafios, porém, dos que pretendem o estudo do ser humano é ter que enfrentar a inexorável posição de observador e objeto, conforme nos ensina Izabel Galvão:

A Psicologia se vê às voltas com a definição de suas balizas como campo de conhecimento. A natureza de seu objeto – o próprio sujeito – dificulta que este seja tratado de forma exterior e distanciada, e a torna especialmente suscetível a substituições indevidas entre o plano subjetivo e o objetivo. (GALVÃO, 1997, p. 27).

Não obstante tais empecilhos, os que se dedicam ao estudo científico do comportamento humano têm desenvolvido um grande repertório de soluções e instrumentos que permitem a observação objetiva (nunca isenta), de nosso desenvolvimento e de nosso funcionamento.
Queremos, portanto, e demandamos esforços para o estudo das transformações sofridas pelo ser humano no decurso de sua vida, com especial atenção para os primeiros anos de sua existência, quando os maiores avanços evolutivos se dão.
Este caráter temporal é preconizado por Jésus Palácios, para quem a grande distinção da Psicologia Evolutiva frente às outras linhas de pesquisa e desenvolvimento da ciência psicológica é que “o que a diferencia é seu interesse pela conduta humana do ponto de vista de suas mudanças e transformações ao longo do tempo. (PALACIOS at all, 2004, p. 13), no que convalida um pressuposto básico do eminente biólogo, epistemólogo e psicólogo suíço, Jean Piaget, que afirma que “o desenvolvimento da criança é um processo temporal por excelência”. (PIAGET, 1972, p. 339).
Aproveitando o ensejo de falarmos de Jean Piaget, cabe aqui a abordagem de como é compreendido o desenvolvimento humano por seus principais estudiosos: Jean Piaget, Lev Vigotiskii[1] e Henri Wallon que, embora não sejam precursores dos estudos neste campo, são os grandes orientadores dos avanços conquistados por nossos contemporâneos.
A mais famosa das teorias desenvolvimentistas, que por muito tempo foi amplamente utilizada na rede de ensino de nosso país como pedra de toque das inovações teóricas educacionais, é a psicogenética piagetena.
Para Piaget, o desenvolvimento humano compreende os campos motores, cognitivos e sócio-afetivo. Entretanto, a ênfase nos estudos deste biólogo suíço foi nos domínios cognitivos do desenvolvimento.
De acordo com seus estudos, todo ser humano trilha um caminho linear de desenvolvimento que implica em quatro grandes estágios: o sensório-motor, o pré-operatório, o operatório concreto e o operatório formal. Estes estágios se sucedem e são necessários a todo ser humano.
Partindo do sensório-motor, a criança que apenas reage ao meio com seu conhecimento inato passará por processos de maturação biológica e aquisição de conhecimentos que serão organizados em esquemas cognitivos instáveis. A aquisição da linguagem será a grande novidade do segundo estágio, quando a criança passará a operar um universo simbólico-mental, credenciando-se para a interação social de onde retirará os subsídios empíricos para a elaboração dos esquemas cognitivos e ampliação de seus recursos de interação. Na última instância (ou estágio), a criança (já adolescente), será capaz de operar o mundo e suas relações de forma abstrata e completamente reversível, ou seja, poderá vivenciar todas as situações e sensações em seu universo intra-psíquico.
Divergindo das postulações piageteanas, teremos o teórico russo Lev Vigotiskii, que propõe que a divisão em estágios é inconveniente e limitada, além de inverter a lógica do teórico suíço ao postular que é o meio que forma o sujeito e não o sujeito que se forma interagindo com o meio.
O sujeito em Vigotiskii é eminentemente social, fruto de processo sócio-histórico e formado por mediações simbólicas, culturais. A aquisição do conhecimento pelo sujeito, em Vigotiskii, se dá pela ampliação da zona de conhecimento real que avança sobre a zona proximal e tende à zona pontecial. São movimentos dinâmicos e passíveis de otimização pelas interferências pedagógicas. Vê-se neste teórico o forte alinhamento com a teoria marxista e seu materialismo dialético.
Já o francês Henry Wallon busca a compreensão do desenvolvimento humano como o processo de construção holística: a psicogênese da pessoa completa. Ele é precursor da idéia de que a dimensão moral-afetiva é igualmente protagonista no processo de desenvolvimento do ser humano. Embora conteste Piaget, o faz na busca por ampliá-lo e acolhe com evidente receptividade os aportes sócio-históricos de Lev Vigotiskii.
Não nos interessa, todavia, o desenvolvimento em toda sua amplitude temporal. O tempo que nos interessa e que será aqui exaustivamente tratado é o intervalo entre os dois e os seis anos de idade, conhecido como “a segunda infância”, a fase dos grandes saltos qualitativos e quantitativos na aquisição de novos domínios pelo ser humano.
Advertimos, todavia, que embora se trate de um recorte, não se pode pressupor a ausência da coerência nestes passos evolutivos. Todos os teóricos que se dedicaram ao estudo do desenvolvimento - seja Wallon, Piaget, Vigotiskii, Freud, concordam em conferir ao desenvolvimento humano o caráter sistêmico, o que pode ser aferido das palavras de Galvão ao anunciar que:

no desenvolvimento humano podemos identificar a existência de etapas claramente diferenciadas, caracterizadas por um conjunto de necessidades e de interesses que lhe garantem coerência e unidade. Sucedem-se numa ordem necessária. (GALVÃO, 1997, p. 39).

Com o fito de delimitarmos nosso campo de análise é que focamos um momento específico da trajetória evolutiva do ser humano. Na segunda infância se dará o aprimoramento psicomotor a níveis bastante parecidos com os que são observáveis nos adultos, bem como, da grafomotricidade (habilidade da escrita) que, embora não personalizada, terá traços que remetem a certa regularidade de formas.
Outra dimensão do desenvolvimento que terá substancial evolução é a cognitiva – das estruturas elementares e não simbólicas da primeira infância, a criança passará ao aparelho cognitivo operando um universo simbólico, onde o real é apreendido e simbolizado ainda de forma limitada, mas essencial para o que Piaget denominou níveis operatórios da inteligência. Há dois agentes causadores que preponderam na referida evolução: a maturação biológica do sujeito e a aquisição da linguagem.
Estudar a segunda infância, portanto, é estudar quatro âmbitos do desenvolvimento humano: o psicomotor, o cognitivo, a linguagem e o moral-afetivo.
Este quarto, por não compor a estrutura proposta para o desenvolvimento dos trabalhos, não será aqui abordado. Não que suas características não sejam suficientes para credenciá-lo à nossa apreciação. Muito pelo contrário. O desenvolvimento não é e nunca poderá ser entendido como a soma das quatro dimensões que se reúnem em determinado momento da história da pessoa.
Desenvolver-se é vivenciar estas quatro dimensões de forma atravessada, imbricada. A separação das dimensões do desenvolvimento é puramente didática e cumpre fins analíticos. É preciso objetivar a análise e esta divisão cumpre o papel de facilitadora dos estudos na área.
Objetivamente, porém, não se pode falar do desenvolvimento humano em instâncias isoladas. A psicomotricidade é determinada e determinante das estruturas cognitivas, afetivas, lingüísticas, A relação, portanto, é mútua, multidirecional, indistinguível.
Nas explanações que se darão, o fracionamento do desenvolvimento nas dimensões apontadas (exceto na moral-afetiva), é um exercício acadêmico, tão somente. Na observação objetiva é impossível determinar os limites de uns e outros. Onde se abordar a estrutura lingüística das crianças observadas, há de se considerar que fatores emocionais-afetivos, fatores cognitivos e fatores ontogenéticos estão subentendidos, presentes, embora em discreta atuação.

1.1. Desenvolvimento Psicomotor

Entre os dois e os seis anos de idade a psicomotricidade da criança passa por profunda evolução, capitaneada pela maturação biológica e moldada pelo meio sócio-cultural da pessoa.
Aquele organismo de movimentos titubeantes e de grande dependência passará a mostrar-se mais interativo com seu meio. Não à toa, PALACIOS, CUBERO, LUQUE e MORA nos avisam que:

Na faixa etária que trataremos agora, o aspecto mais relevante está ligado à extensão e ao refinamento do controle sobre o corpo e seus movimentos; podemos, por isso, afirmar que estamos diante de uma etapa de grande importância para o desenvolvimento psicomotor, na qual ocorrem notáveis transformações tanto no âmbito prático (da ação) quanto no simbólico (da representação). (PALACIOS at all,, 2004, p. 127).

A criança entre dois e seis anos de idade ver-se-á diante de transformações substanciais, começando pela ampliação corporal vertiginosa (crescerá, em média, 45% - de 80 centímetros para 1,25 metro), ganhará independência e coordenação de seus movimentos e, não menos importante, desenvolverá sobremaneira sua psicomotricidade invisível (estruturação de espaço e tempo, controle do tônus muscular, do equilíbrio e da respiração).
Não obstante o dimorfismo sexual, termo utilizado para delinear as diferenças entre meninos e meninas, sempre será possível extrair regularidades dos processos maturacionais que terão seu correlato físico no desenvolvimento do córtex pré-frontal – o responsável pelas atividades de planejamento, controle das condutas complexas e comando da maquinaria cognitiva. (PALACIOS at all, 2004, p. 130).
No que tange à psicomotricidade visível, a criança vivenciará a aquisição de habilidades no campo da motricidade grossa e controle postural e, também, no campo da motricidade fina e controle óculo-manual – processo que se dá com a fluência dos processos englobados na lei céfalo-caudal (partes próximas à cabeça são controladas primeiramente e depois prosseguem em sentido descendente), e na lei próximo distal (desenvolvimento do controle psicomotor das partes próximas do eixo corporal para posterior difusão).
Já em estágio avançado do desenvolvimento psicomotor, a criança vivenciará o estabelecimento da lateralidade corporal (pernas, mãos e olhos) e, concomitantemente ao salto quantitativo e qualitativo em seu conhecimento lingüístico, conquistará o domínio quase completo de sua grafomotricidade.(habilidade de escrever e desenhar).
Todas as características do desenvolvimento ora apontadas foram observadas nas crianças participantes de nossa atividade e serão relatadas no momento oportuno.

1.2. Desenvolvimento cognitivo

A cognição é amplamente entendida como a capacidade humana de codificar, transformar e organizar as informações que captamos de nosso meio físico e social.
De forma abrangente, poderíamos afirmar que a cognição é a grande definidora de nossa distinção dos outros animais mamíferos, juntamente com o desenvolvimento de nosso polegar opositor e da postura ereta.
Apesar de sua definição sumária em nossos principais dicionários como apenas “a aquisição de conhecimento”, nas odes da Psicologia este termo ganha especial relevância.
É pela capacidade de apreender, elaborar e manipular simbólica e abstratamente a realidade objetiva que o ser humano se torna apto a interferir nesta realidade e transformá-la.
Na segunda infância, com o desenvolvimento da linguagem e segundo Piaget, o ser humano passa a contar com um importante recurso cognitivo: a representação simbólica de um correlato presente na realidade objetiva.
Estudar o desenvolvimento das capacidades cognitivas implica em estudar a formação destas capacidades. Entre os 2 e 6 anos de idade são relevantes as aquisições cognitivas em três âmbitos: no mundo físico dos objetos, no meio social dos objetos com mente (pessoas), e no mundo interior de representações simbólicas.
Será através dos desenhos, da imitação, dos jogos e da linguagem que a criança expressará e permitirá o monitoramente de seu desenvolvimento simbólico.
Nesta fase a criança passará a ser capaz de se comunicar verbalmente – ainda que seja uma linguagem puramente instrumental, imitar (mimetizar) os objetos com mente de seu convívio (a criança não é capaz, no início da segunda infância, de elaborar o conceito de pessoa), e jogar com representações assumindo papéis e ocupando lugares de forma que prenuncia a consecução da abstração completa.
Os fenômenos cognitivos relevantes desta fase serão a aquisição do conceito de classes, de espacialidade, permanência de objetos, desenvolvimento da atenção – que passará a ser focal, mantida e conjunta, permitindo sua utilização planejada.
Outra conquista de suma importância será a dos conhecimentos temático e taxionômico, capacitando o sujeito a elaborar protótipos semânticos do conhecimento, ou seja, núcleos de significação representados mentalmente. Isto se dará através da construção dinâmica de esquemas e categorias.
O esquema, como nos contam COLL, MARCHESI, PALACIOS & COLs., é “um tipo de representação mental que organiza conjuntos gerais de conhecimento que as pessoas possuem sobre a realidade, conjuntos armazenados na memória semântica” (COLL at all, 2004, p. 150).
Assim, ao construir um esquema, a criança estará simbolizando uma cena recorrente em seu cotidiano, ou seja, uma cena de regularidades objetivas, por exemplo: relações físicas de objetos, relação entre objetos e lugares, relação entre objetos e posições.
É igualmente importante apontar os esquemas que incluem a representação de sequências temporais de acontecimentos, como nos ensinam os autores ora abordados. Tais esquemas temporais, como se pode presumir, serão particularmente importantes para a compreensão do encadeamento dos fatos recorrentes. A criança da segunda infância construirá representações que a orientarão a saber, por exemplo, que o cheiro de comida seguido pelo convite materno para vir à mesa implicam em almoçar.
Outra vertente do desenvolvimento cognitivo representativo é a categorial ou taxionômica. Além de passar a classificar a realidade em esquemas a criança desenvolverá a capacidade de categorizar a realidade em três níveis, como nos ensinam COLL, MARCHESI, PALACIOS & COLs, citando Rosch et all:

A partir dos dois ou três anos de idade, começa a se formar uma estrutura categorial que se articula em três níveis: as categorias básicas, as categorias supra-ordenadas e as subordinadas. (COLL et all, 2004, p. 152).

A categorização básica dá conta da distinção elementar entre os objetos como cadeira, mesa, computador etc. Já a supra-ordenada avança na organização e permitirá à criança entender que cadeira e mesa são móveis, enquanto computador, televisor, ventilador e similares são eletrodomésticos.
Ao dominar as categorizações subordinadas a criança será capaz de entender e classificar o mundo objetivo ao seu redor de forma mais fina, diferenciando, por exemplo, um computador de mesa de um portátil (notebook).
Será na segunda infância, também, que a criança passará a utilizar estratégias de memorização. Por atendimento à demandas externas ou internas, a criança se verá utilizando estratégias para memorizar eventos ou tarefas.
Nas atividades que realizamos com crianças, como se poderá verificar quando de suas explanações, houve a evidente utilização deste recurso para a satisfação de uma demanda dos aplicadores, notadamente, da mais utilizada, que é a repetição.
A última, porém não menos importante característica do desenvolvimento cognitivo que foi abordada neste estudo é o fenômeno da memória autobiográfica, predominante sobre outros tipos de memória durante a segunda infância.
De acordo com os autores estudados, as crianças, quando nesta fase, tendem a ter predominância de memorização de eventos particulares, pessoais. É um indicador do egocentrismo apontado por Jean Piaget como traço efetivo das crianças desta idade.

1.3. Desenvolvimento lingüístico

Como já apontado, não cabe apreciar qualquer âmbito do desenvolvimento sem considerar que todos eles estão imbricados. Entretanto, entre a linguagem e a cognição há uma ligação que nos parece muito mais estreita, afinal, a linguagem é o grande instrumento de estruturação do aparelho cognitivo.
Esta indistinção chega a tal ponto que, até mesmo Jean Piaget propôs que não havia pensamento antes da aquisição da linguagem, mas puro comportamento instintual.
Independentemente de imiscuirmo-nos nesta discussão, para a qual julgamos não ter qualquer colaboração, cabe a consideração de que são dimensões muitíssimo afetas, indissociáveis.
O que os estudiosos do desenvolvimento percebem é que ocorre um grande salto quantitativo e qualitativo da memória entre os 2 e os 6 anos de idade.
Neste salto se verá, como nas outras dimensões do desenvolvimento, os aspectos maturacionais e sócio-culturais atuando de forma determinante. Apesar de considerar, contrariando Piaget, que a criança é capaz de perceber e apreender estruturas lingüísticas mesmo antes de conseguir falar, os autores que nos servem por base para o presente estudo são taxativos em afirmar que o desenvolvimento da linguagem passa, obrigatoriamente, pelo desenvolvimento do aparelho bucofonador.
É somente a partir da maturação deste aparelho, portanto, que a criança estará pronta para comunicar-se verbalmente e desenvolver suas ferramentas lingüísticas que desaguarão no controle da dimensão semântica da linguagem, ou seja, da dimensão dos significados e significantes do sujeito.
Neste ponto de seu percurso, a criança será capaz de aprender entre 5 e 9 palavras novas a cada dia, fenômeno que os estudiosos chamam de explosão de vocabulário e que perdurará até os seis anos de idade.
Independentemente de considerarmos os avanços psicomotores, e sabendo indissociáveis os cognitivos e lingüísticos, podemos tomar por razoável que a explosão de vocabulário é o grande acontecimento da segunda infância do ser humano.
Com a aquisição diária de novos recursos semânticos, haverá uma dilatação surpreendente da capacidade da criança em entender o mundo ao seu redor e, principalmente, de estabelecer conversações cada vez mais elaboradas e satisfatórias com os adultos ou outras crianças.
As ocorrências de desvio nesta fase são comumente identificadas como de infra ou sobreextensão. Na primeira haverá a dificuldade em generalizar um significante. Assim, a criança terá dificuldades de identificar como mesa, qualquer objeto que, ainda que satisfaça a descrição de mesa, não for quadrada ou retangular como a que lhe serviu de objeto para a aquisição do significante.
Na sobreextensão poderemos perceber o movimento contrário. A criança tenderá a generalizar além do que deveria. Isto a levará a chamar de “au-au” (como nos falam COLL, MARCHESI, PALACIOS & COLS.), todos os quadrúpedes.
No limiar superior da segunda infância, quando atingindo seis anos de idade, a criança terá um domínio acurado dos recursos lingüísticos e utilizará a fala com vastos recursos morfológicos, sintáticos, fonológicos e semânticos.
Será possível perceber, então, que há dois tipos predominantes de posturas para essas crianças, no que concerne a seu tipo de fala: o referencial e o expressivo.
As crianças que fizerem uso prevalecente da fala referencial, demonstrará precisão na designação de objetos e situações, com largueza de vocabulário e desenvoltura pragmática (performática saussureana), sempre com o que se pode classificar como objetividade.
As crianças cuja fala tiver a predominância de traços expressivos, será percebida como aquela cuja comunicação é mais pontuada pelo caráter sentimental, com uso abundante de pronomes demonstrativos (isto, aquele), e tendência à dependência da compreensão de seus interlocutores, o que potencializa as trocas sociais.
Nos pontos que seguem, buscaremos operacionalizar os conceitos ora expostos. Antes que passemos ao próximo tópico, é interessante pontuarmos uma discordância terminológica.
Quando demandados à execução do presente trabalho, fomos instruídos a fazer observações e o termo é largamente utilizado por nossos companheiros e companheiras de turma.

Entendemos, todavia, que falarmos em observação não é adequado para o tipo de atividade realizada, uma vez que atuamos de forma bastante ativa na execução dos procedimentos.
Desta forma, preferimos classificar como uma atividade de observação e, sobretudo, de estimulação das crianças participantes para que se desse um contexto de interação e manifestação que permitisse a observação passiva que gerou as anotações que serão expostas a seguir.
2. Desenvolvimento

Visando a operacionalização dos conceitos apontados no tópico anterior, utilizamos os apontamentos do livro Desenvolvimento psicológico e educação, como ponto de partida para as atividades, resgatando a prática de inclusão de classes de Piaget e o experimento de raciocínio preditivo de Jacobs e Potenza, 1991; e Rodrigo, Castañeda e Camacho, no prelo, apontados na obra supracitada à página de número 157.

Assim, foram realizadas as seguintes atividades:

2.1. Atividades para observação do desenvolvimento psicomotor

3-4 ANOS
Descer escadas com desenvoltura e sem apoio, colocando um pé em cada degrau;
Correr mancando (cinco pulos, aproximadamente);
Maior controle para começar a correr, para e girar
Cortar uma linha com tesoura;
Dobrar papel, usar punção para furar, colorir formas simples;
Utilizar o garfo para comer;


5-6 ANOS
a. Saltar uns 30 cm em altura e cerca de 1 m de distância;
b. Lançar e pegar bolas como crianças mais velhas;
Aprender a andar de bicicleta;
Escrever alguns números e letras;
Copiar um triângulo e, posteriormente, um losango.
Chutar bola ao gol
Lançar bola contra pinos de boliche.


2.2. Atividades para observação do desenvolvimento grafomotor

As crianças foram convidadas a desenhar fartamente e escrever palavras e números.

2.3. Atividades para observação do desenvolvimento cognitivo

a. Inclusão em classes;
· Prova piageteana de inclusão. Fazer testes dos animais e dos gatos.

i. Todo gato é um animal?
ii. No mundo todo existem mais gatos ou mais animais?
iii. Por quê?
b. Conservação de direção
· Dispor objetos, fazer criança fechar os olhos, girar devagar 90 graus e, ainda com os olhos fechados apontar a direção em que estão os objetos;
c. Teste de raciocínio e utilização de regras
· Contar a história do jardineiro que cortou 8 rosas e 2 margaridas. (Raciocínio preditivo).
d. Teste do jogo simbólico
· Jogar e pedir para a criança interpretar papéis distintos (do pai, do amiguinho, de médico etc). (Habilidades sociocognitivas).
e. Testar estruturas de raciocínio:
· Animista: perguntar por que as nuvens se movem;
· Fenomenismo: perguntar se vai anoitecer se ela sentir sono;
· Finalismo: perguntar por que chove, por que existe o dia, por que as pessoas falam. A intenção é analisar se a criança apresentará uma “finalidade” para tudo, ainda que esta finalidade seja uma opinião particular.
f. Teste da adaptação da linguagem
· Pedir para a criança contar uma história e depois pedir para que conte outra como se estivesse falando com um bebê e quisesse fazê-lo dormir;
g. Teste de roteiros e esquemas
· Pedir para a criança descrever como come em casa e como come na escola
· Brincar com a criança e pedir para ela fazer de conta que está comendo uma coisa bem gostosa (perguntar antes qual a comida preferida). Analisar se ela mimetiza e se abstrai a presença de prato, comida e utensílios.
h. Teste da memória: pedir para a criança ir até um cômodo e pegar alguns objetos. O aplicador narrará a lista de objetos que deseja.
i. Teste de memória autobiográfica: pedir para a criança narrar em detalhes o primeiro dia de aula na escolinha ou algum evento passado. Depois de ela narrar na primeira pessoa (fala egocêntrica), pedir para ela dizer como estava o papai ou a mamãe naquele dia.

2.4. Atividades para observação do desenvolvimento lingüístico


Foram observadas as falas das práticas anteriores e além disso, faremos:


a. Teste de forma de pedido (direto, indireto). Instruir a criança a pedir um bombom para o Lucio, mas informá-la de que ele gosta que as crianças sejam educadas quando pedem coisas.
b. Simular conversa ao telefone para analisar o desenvolvimento pragmático da linguagem;
c. Analisar se a linguagem é essencialmente referencial ou expressiva.
d. Teste das categorias supra-ordenadas: perguntar quais são os tipos de móveis que a criança conhece, os tipos de brinquedos etc.
e. Teste das categorias subordinadas: perguntar quais são os tipos de copos que a criança conhece e seguir com outros tipos de categorias (cadeira, mesa, carro etc)
2.5. Participantes

As observações foram realizadas com duas participantes, ambas do sexo feminino. A participante A tem cerca de 5 anos e 11 meses de idade e 1,24 metro de altura; a participante B tem cerca de 6 anos e 2 meses de idade e 1,22 metro de altura.
A escolha se deu pelo interesse dos observadores em analisar crianças da mesma classe social e na mesma faixa etária, dado nosso interesse de analisar as diferenças decorrentes de características ontogenéticas. Amba
As observações foram realizadas em setting especialmente montado na casa de um dos observadores, vizinho das participantes escolhidas. Em três cômodos especialmente preparados, foram dispostos brinquedos e utensílios para a realização das tarefas preparadas.
As atividades foram realizadas, preferencialmente, em conjunto. Somente quando o desempenho de uma participante poderia intervir no da outra é que optamos por separá-las, como por exemplo, nas observações cognitivas.
Ao chegarem, as participantes foram recepcionadas com brincadeiras e apresentações informais. Foram informadas de que as observações seriam filmadas e, a exemplo de suas mães, aquiesceram.
As crianças foram servidas de água e perguntadas se gostariam de comer alguma coisa. Deu-se uma série de interações e distrações que tinham por objetivo alcançar a descontração e evitar que as crianças interpretassem as observações como eventuais testes.
Após cerca de 30 minutos de brincadeiras e descontração, passamos às observações sem um anúncio formal, para não assumir tom protocolar.
De posse da filmadora, um dos observadores passou a registrar o encontro e as participantes mostraram desenvoltura e a descontração almejada.
A sessão de observação durou cerca de 1 hora e 30 minutos e terminou com um lanche onde todas as participantes, observadores e os responsáveis pelas participantes se sentaram à mesa para partilhar um lanche.
As crianças foram agraciadas, ainda, com doces e outras guloseimas e instruídas para levarem para casa.

2.6. Desempenho das participantes

Como a gama de observações realizadas foi vasta, optamos por tabular os dados de forma separada por participante e, posteriormente, pontuar eventuais desempenhos discrepantes.
2.6.1. Participante A

Desenvolvimento Psicomotor e Grafomotor
Atividade observada
Desempenho da participante
Descer escadas com desenvoltura e sem apoio, colocando um pé em cada degrau;
Desempenho satisfatório, realizado com desenvoltura.
Correr mancando (cinco pulos, aproximadamente);
A participante saltou mais de 10 vezes
Maior controle para começar a correr, para e girar
Domínio completo
Cortar uma linha com tesoura;
A participante teve dificuldades para seguir tanto a linha reta quanto a ondulada.
Dobrar papel, usar punção para furar, colorir formas simples;
A participante teve desempenho satisfatório.
Utilizar o garfo para comer;
A participante não está habituada a utilização do garfo (preferiu a colher)
Saltar uns 30 cm em altura e cerca de 1 m de distância;
A participante saltou 37 cm em altura e 1,10 m de distância
Lançar e pegar bolas como crianças mais velhas;
A participante teve desempenho satisfatório.
Aprender a andar de bicicleta;
A mãe informou que a criança anda de bicicleta com desenvoltura.
Escrever alguns números e letras;
A participante escreve, tipicamente, de forma que pode ser considerada pré-caligráfica
Copiar um triângulo e, posteriormente, um losango.
A participante teve desempenho satisfatório
Chutar bola ao gol
A participante teve desempenho satisfatório
Lançar bola contra pinos de boliche.
A participante demonstrou coordenação óculo-manual, embora não tenha conseguido acertar qualquer pino.


Atividades Gerais
Brincar de desenhar
A participante desenhou com traços característicos do estágio final da segunda infância
Lateralidade de mãos e pernas
A participante demonstrou lateralidade bem definida (destra). Em momento algum utilizou o lado esquerdo para atividades que exigiam a manifestação da lateralidade.
Controle respiratório
O controle respiratório voluntário e involuntário é completo.


Desenvolvimento Cognitivo

Atividade observada
Desempenho da participante
Inclusão de classes (perguntas sobre gato)
A participante teve desempenho satisfatório
Conservação de direção – girar e apontar objetos ocultados
A participante teve desempenho satisfatório
Raciocínio preditivo e utilização de regras (história do jardineiro)
A participante não demonstrou ter domínio sobre as formas de raciocínio preditivo
Jogo simbólico – interpretação de papéis distintos
A participante teve desempenho satisfatório
Estrutura animista – Por que as nuvens se movem no céu?
Apesar de estar no final da segunda infância, a criança manifestou predominância da estrutura animista, explicando que as nuvens se movem para “vigiar as pessoas aqui embaixo”
Estrutura Fenomenista – perguntar se vai anoitecer se ela sentir sono.
Apesar de estar no final da segunda infância, a criança manifestou estrutura fenomenista, indicando que se ela sentir sono anoitecerá. Pode ser um indicativo de uso de raciocínio lógico dedutivo, uma vez que ela argumentou que, se ela sente sono é porque é noite.
Estrutura Finalística – Por que chove? Por que existe o dia? Por que as pessoas falam?
A participante não demonstrou ter estrutura cognitiva finalística
Teste da adaptação da linguagem – Pedir para a criança contar uma história qualquer e depois pedir para que ela repita para uma criança menor
A participante teve desempenho satisfatório, adotando “fala maternal”
Teste de roteiros e esquemas – Pedir para a criança descrever como come em casa e na escola
Os resultados foram inconclusivos por que a narrativa foi fragmentada.
Teste de roteiros e esquemas – Brincar de comer a coisa mais gostosa que ela conhece, só que imaginando a presença da comida e dos utensílios para comer.
A participante teve desempenho satisfatório
Teste da memória: procurar objetos indicados em outro lugar.
A participante teve desempenho satisfatório e usou a estratégia de repetição. Entre o momento em que foi demanda e o de coleta dos objetos, não cessou de repetir a lista em voz baixa.
Teste de memória autobiográfica: primeiro dia de aula
Os resultados foram inconclusivos por que a narrativa foi fragmentada.




Desenvolvimento da Linguagem

Teste da forma de pedido (direto ou indireto)
A participante realizou o pedido na forma direta.
Teste da conversa telefônica (desenvolvimento pragmático – performático)
A participante teve desempenho satisfatório. Travou conversa bem articulada com sua irmã.
Teste das categorias supra-ordenadas (quais são os tipos de móveis que a criança conhece)
A participante teve desempenho satisfatório.
Teste das categorias subordinadas (tipos de copos etc)
A participante teve desempenho satisfatório e apresentou vários exemplos de categorias subordinadas.
Teste da linguagem referencial ou expressiva
A participante demonstrou a predominância da linguagem referencial, com precisão e pouca recorrência aos pronomes demonstrativos.


2.6.2. Participante B

Desenvolvimento Psicomotor e Grafomotor
Atividade observada
Desempenho da participante
Descer escadas com desenvoltura e sem apoio, colocando um pé em cada degrau;
Desempenho satisfatório, realizado com desenvoltura.
Correr mancando (cinco pulos, aproximadamente);
A participante saltou mais de 10 vezes
Maior controle para começar a correr, para e girar
Domínio completo
Cortar uma linha com tesoura;
A participante teve desempenho satisfatório, demonstrando grande habilidade.
Dobrar papel, usar punção para furar, colorir formas simples;
A participante teve desempenho satisfatório.
Utilizar o garfo para comer;
A participante teve desempenho satisfatório.
Saltar uns 30 cm em altura e cerca de 1 m de distância;
A participante saltou 34 cm em altura e 1,20 m de distância
Lançar e pegar bolas como crianças mais velhas;
A participante teve desempenho satisfatório.
Aprender a andar de bicicleta;
A mãe informou que a criança anda de bicicleta com desenvoltura.
Escrever alguns números e letras;
A participante escreve, tipicamente, de forma que pode ser considerada caligráfica infantil.
Copiar um triângulo e, posteriormente, um losango.
A participante teve desempenho satisfatório
Chutar bola ao gol
A participante teve desempenho satisfatório
Lançar bola contra pinos de boliche.
A participante demonstrou coordenação óculo-manual e, nas duas tentativas, derrubou pinos.



Atividades Gerais
Brincar de desenhar
A participante desenhou com traços característicos do estágio final da segunda infância
Lateralidade de mãos e pernas
A participante demonstrou lateralidade bem definida (destra). Em momento algum utilizou o lado esquerdo para atividades que exigiam a manifestação da lateralidade.
Controle respiratório
O controle respiratório voluntário e involuntário é completo.


Desenvolvimento Cognitivo

Atividade observada
Desempenho da participante
Inclusão de classes (perguntas sobre gato)
A participante teve desempenho satisfatório
Conservação de direção – girar e apontar objetos ocultados
A participante teve desempenho satisfatório
Raciocínio preditivo e utilização de regras (história do jardineiro)
A participante não demonstrou ter domínio sobre as formas de raciocínio preditivo
Jogo simbólico – interpretação de papéis distintos
A participante teve desempenho satisfatório
Estrutura animista – Por que as nuvens se movem no céu?
A participante não demonstrou ter estruturas animistas. Sua resposta foi atinente às explicações dos adultos sobre os fenômenos meteorológicos.
Estrutura Fenomenista – perguntar se vai anoitecer se ela sentir sono.
A participante não demonstrou ter estruturas fenomenistas.
Estrutura Finalística – Por que chove? Por que existe o dia? Por que as pessoas falam?
A participante não demonstrou ter estrutura cognitiva finalística
Teste da adaptação da linguagem – Pedir para a criança contar uma história qualquer e depois pedir para que ela repita para uma criança menor
A participante teve desempenho satisfatório, adotando “fala maternal”
Teste de roteiros e esquemas – Pedir para a criança descrever como come em casa e na escola
A participante teve desempenho satisfatório.
Teste de roteiros e esquemas – Brincar de comer a coisa mais gostosa que ela conhece, só que imaginando a presença da comida e dos utensílios para comer.
A participante não demonstrou ter esquemas formados para a cena escolhida.
Teste da memória: procurar objetos indicados em outro lugar.
A participante teve desempenho satisfatório e usou a estratégia de repetição. Entre o momento em que foi demanda e o de coleta dos objetos, não cessou de repetir a lista em voz baixa.
Teste de memória autobiográfica: primeiro dia de aula
A participante teve desempenho satisfatório. A narrativa foi consistente e permeada de detalhes, inclusive sobre a mãe.




Desenvolvimento da Linguagem

Teste da forma de pedido (direto ou indireto)
A participante realizou o pedido na forma direta.
Teste da conversa telefônica (desenvolvimento pragmático – performático)
A participante travou diálogo fragmentado, portanto, inconclusivo.
Teste das categorias supra-ordenadas (quais são os tipos de móveis que a criança conhece)
A participante teve desempenho satisfatório.
Teste das categorias subordinadas (tipos de copos etc)
A participante teve desempenho satisfatório e apresentou vários exemplos de categorias subordinadas.
Teste da linguagem referencial ou expressiva
A participante demonstrou a predominância da linguagem expressiva, recheada de pronomes demonstrativos e recorrências à mãe que assistia para auxiliar na complementação de informações aos observadores.


3. Discussão

No momento em que temos que conjugar a teoria abordada com as observações das práticas realizadas, há grande convergência entre o conteúdo trazido ao contexto da vida cotidiana.
As observações realizadas através de interferência direta nas ações das participantes são de grande valia para nossas intenções.
No que concerne ao desenvolvimento psicomotor, houve uma conformidade plena. Ambas as participantes deram demonstrações inequívocas de terem alcançado o domínio de seus sistemas psicomotores regidos pelas leis céfalo-caudal e próximo distal. Seus movimentos grossos e finos são plenamente harmonizados.
Quando das práticas que envolviam recursos atencionais e psicomotores, ambas apresentaram resultados convincentes. Os movimentos são independentes (mover a cintura não implica em mover o tronco, mover o braço não implica em mover os ombros ou as pernas).
O lançamento de bolas contra pinos de boliche, o chute contra um gol imaginário e a brincadeira de passar a bola para a companheira ao lado foram suficientes para evidenciar o domínio háptico sobre o tônus muscular, o equilíbrio e a respiração. Voluntária ou involuntariamente estas atividades foram realizadas com êxito.
Ambas revelaram normalidade postural e lateralidade destra em bases sólidas. Em nenhum momento das observações houve a troca da mão ou do pé definido como predominante nas ações. Todos os lançamentos de mão única foram realizados com a mão direita. Todos os chutes foram realizados com o pé direito.
Quanto à grafomotricidade, um pequeno hiato foi percebido entre as duas participantes. A participante A, mais nova, apresentou indícios de ter escrita pré-caligráfica, com notável inconstância no formato e alinhamento das letras, inclusive para escrever o próprio nome.
Já a participante B revelou refinamento típicos de escrita infantil, com linearidade e traços bem definidos, inclusive os que implicaram na utilização de mais de um elemento gráfico (reta, círculo etc).
De qualquer forma, não há que se falar em desvio ou déficit em qualquer dos casos no tocante à grafomotricidade, há de se considerar, sobretudo, que:

o entorno social exerce uma enorme influência na modelagem das destrezas grafomotoras: dando ou não oportunidades para praticá-las, incentivando mais ou menos a produção ou a reprodução de desenhos ou letras, treinando no manejo dos instrumentos de desenho e de escrita...(COLL at all, 2004, p. 136).

Aproveitando a oportunidade, abordemos os desenhos realizados, também componentes das habilidades grafomotoras (evitamos aqui um termo caro ao autor: destreza. Destreza é qualidade de quem é destro segundo preconceito apontado pelos próprios autores contra os canhotos).
Quando solicitadas a fazerem desenhos, as participantes foram instruídas a representarem a si mesmas, a seus pais e familiares. Como se pode aferir da observação do anexo 1, a participante A desenha de acordo com o padrão apontado como o típico de crianças de 6 anos, ou seja, da sua idade se considerarmos uma pequena decalagem para mais ou menos.
Os traços da participante A são bem definidos, apesar da pouca força que imprime ao lápis, o que resulta em um desenho quase invisível.
De toda sorte, os traços são precisos. Há abundâncias de círculos, retas e expressões faciais, o que permite inferir que a participante tem um bom estabelecimento de esquemas e representações corporais.
Embora tenham um padrão aparentemente diferenciado, os desenhos da participante B (anexo 2), não diferem de sua companheira. Os traços têm a mesma regularidade e indicam a boa representação corporal simbólica.
Uma característica que nos chama a atenção em ambos os desenhos é o fato de as participantes terem pintado seus pais em azul ou nuances do mesmo. Nas figuras femininas aparecem cores mais vibrantes: azul, amarelo e laranja. Já na figura masculina, as cores usadas são sempre sóbrias.
Como tiveram total liberdade para escolher as cores que utilizariam, uma vez que todos os lápis estavam dispostos ao alcance de suas mãos, é de se supor que há, neste fenômeno, a manifestação do fator cultural influenciando a percepção e a estruturação cognitiva das participantes: o pai é sóbrio, sério. A mãe, por sua vez, é o modelo de feminilidade.
Assim é que as bocas que a participante B pinta para si e para a mãe são feminilizadas - os lábios são largos e se opõem ao risco levemente curvado que representa os lábios do pai.
Analisando, desta feita, os aspectos marcadamente cognitivos manifestados durante as atividades observadas vimos também uma diferenciação residual entre as participantes, que pouco se distanciaram do que nos propõem as teorias do campo.
Há a clara distinção entre o mundo físico dos objetos, o meio social dos objetos com mente (estes do início da segunda infância – no final, já teremos estabelecida a distinção entre pessoas e objetos), e o mundo interior das representações sociais. A relação das participantes com estas realidades objetivas e subjetivas é bem definida e irretocável até onde as observações nos permitiram sondar.
Ambas as participantes demonstraram clara capacidade de inclusão de classes quando perguntadas sobre a distinção entre animais e gatos. Sem titubear, afirmaram que há muito mais animais do que gatos e que estes são apenas uma espécie que pode e deve ser incluída naquela classe de elementos.
O exceto desta parte da observação ficou por conta da demonstração de ambas sobre a não operação do raciocínio lógico preditivo quando defrontadas com o dilema do jardineiro que se feriu quando cortava rosas e margaridas.
Segundo COLL, MARCHESI, PALACIOS & COLS., ao final da segunda infância a criança seria capaz de predizer que a probabilidade de o jardineiro ter se ferido enquanto cortava rosas, já que as rosas somavam 80% do total de flores colhidas.
A participante A respondeu que o jardineiro, provavelmente, se cortou a colher uma rosa, o que prenunciava uma resposta com boa base preditiva. Todavia, quando questionada sobre a razão de sua resposta, complementou dizendo que ele tinha se ferido ao cortar rosas porque ele iria se casar.
Podemos inferir do complemento da resposta uma abstração, uma associação com as histórias românticas às quais a participante teve acesso. Novamente, nossa melhor hipótese é a influência sócio-cultural.
A participante B, por sua vez, respondeu que o jardineiro devia estar colhendo margaridas quando se feriu. Ao ser solicitada a explicar sua resposta, afirmou que as margaridas tem espinhos, demonstrando desconhecimento da topografia da flor em questão. Isto, por si só, invalida a questão para os fins propostos, uma vez que a criança demonstrou ignorar a natureza dos elementos constituintes da história.
Outro ponto que merece consideração é das variações do que Piaget considerava pensamento egocêntrico da criança pré-operatória. A participante A demonstrou como característica de sua forma de pensar o animismo e o fenomenismo, ou seja:

a crença de que os objetos inanimados estão vivos e dotados de intenções, de desejos, de sentimentos e pensamentos.(...) Piaget descreveu outras manifestações bastante interessantes do egocentrismo, como são o fenomenismo (estabelecer um laço causal entre fenômenos que ocorrem próximos: pensar que a vontade de dormir basta para que a noite chegue). (COLL at all, 2004, p. 144).

Novamente somos defrontados com o caráter que tipificaríamos como “romântico” de participante A, o que pode ser um bom indicador de como se particularizar a análise de suas participações.
Apesar de não o afirmar a teoria, somos tentados a acreditar que há outros elementos que devem ser considerados quando da análise dos dados referentes á participante em questão.
Nos outros pontos atinentes à observação da dimensão cognitiva das participantes, houve a convergência de seus desempenhos. Ambas demonstraram domínio satisfatório de conhecimento temático e taxionômico, respondendo com convicção as perguntas que implicavam na observação da presença da capacidade cognitiva de estabelecimento de sequências temporais, e das categorias básica, subordinada e supra-ordenada.
A observação da memória autobiográfica das participantes novamente as afastou: enquanto a participante B relatou seu primeiro dia de aula com riqueza de elementos, a participante narrou o evento de forma bastante fragmentada, sugerindo não lembrar ou a exaustão, uma vez que estávamos no final de nossas observações que duraram mais que duas horas ininterruptas.
O domínio lingüístico, todavia, mostrou-se pleno para os parâmetros referenciais. Ambas demonstraram coerência sintática e morfológica, com utilização de pronomes, adjetivos e verbos devidamente colocados, sem modismos ou vícios evidentes.
No que tange à predominância da postura discursiva, a participante A demonstrou a predominância da comunicação referencial para se comunicar com os observadores, enquanto a participante B demonstrava a predominância da comunicação expressiva e sempre recorria à mãe na tentativa de que esta esclarecesse o sentido de suas respostas aos observadores.
A respeito do caráter gestáltico ou analítico de composição da fala, não logramos êxito em observá-los. Isto implicaria em fazermos testagens mais acuradas que despenderiam tempo elevado.
4. Considerações Finais

A realização das observações aqui relatadas foi uma oportunidade rica. Ao levarmos o conhecimento teórico, adquirido no decurso das aulas, para a prática cotidiana, ganhamos subsídios de valor incomensurável para nossa formação profissional.
Quando programávamos nossos estudos e revisões bibliográficas para a realização das observações, fomos inundados por questões e questionamentos sobre nossa capacidade de cumprir a tarefa que nos foi delegada.
O faríamos a contento? Como realizar esta atividade buscando algo além da simples replicação de um conhecimento consolidado sem que, todavia, nos permitíssemos uma falta de rigor que implicaria em nulidade do processo?
Diante de nossas dúvidas, optamos pelo pragmatismo. Após a leitura e a análise meticulosa do conteúdo a ser alcançado por nossos esforços, elegemos os pontos focais, ancoramos nossas práticas no que nos traziam os autores abordados e confiamos na validade da experiência como formadora de nossa familiaridade no campo aplicado da Psicologia.
Para nós, diante do exposto, a atividade foi de todo proveitosa. Sabemos que nos falta muito para que compreendamos o essencial do que precisamos para agir com segurança e eficácia para interferir nos processos de desenvolvimento das crianças que eventualmente precisem de auxílio profissional, mas já temos um caminho seguro a trilhar na direção da validação de nossos esforços como estudantes.






Referências Bibliográficas

BEE, Helen. O ciclo vital. Tradução de Regina Garcez. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

COOL, César. MARCHESI, Álvaro. PALACIOS, Jesús. Desenvolvimento psicológico e educação. Tradução de Daisy Vaz de Moraes. Porto Alegre: Artmed, 2004.

PIAGET, Jean. A epistemologia genética in Os pensadores. São Paulo: Abril, 1975.

[1] Gafia russa encontrada nos livros de Alexander Romanovich Luria

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

PONTO DE MUTAÇÃO

*Análise do filme "Ponto de Mutação" sob as visões de paradigma segundo Morin e Capra.

Se por um lado, Morin pretende que paradigmas sejam “princípios ‘supralógicos’ de organização do pensamento, princípios ocultos que governam nossa visão de mundo, que controlam a lógica de nossos discursos, que comandam nossa seleção de dados significativos, sem que tenhamos a consciência disto”, Capra os define como “a totalidade de pensamento, percepções e valores que formam uma determinada visão da realidade, que a base do modo como uma sociedade se organiza.”

Não posso deixar de manifestar minha predileção pela conceituação de Edgar Morin. Creio que paradigmas suplantam a natureza lógica do pensamento, precedendo-os e desdobrando-se mais como condicionantes ou orientadores-reguladores, características desprezadas por Fritjof Capra. Ao dizer que paradigmas são “totalidades de pensamento”, Capra demonstra sectarismo e um inegável espírito de simplificação e esoterismo que permeará sua obra. Todavia, como abordamos a versão cinematográfica do trabalho deste, me aterei às elucubrações à luz de sua conceituação.

Tendo resolvido a definição que nos interessa aqui, situemos as personagens do filme:

1. Sonia Hoffmann – física e cientista em auto-exílio impulsionado por conflitos morais em torno da utilização de seus trabalhos para aplicações militares. Seu paradigma é o da Teoria dos Sistemas, defendido por Capra, Gregory Bateson, Humberto Maturama e outros.

2. Jack Edwards – senador americano, candidato derrotado à presidência cujos paradigmas podem ser classificados como: cartesiano e newtoniano, pragmático liberal.

3. Thomas Harrimann – poeta em auto-exílio como Sonia, fugindo dos padrões de vida nova-iorquinos aos quais não se adapta. Paradigmas: romântico, parnasiano, alienado e omisso.

Agora, sim. Vamos ao enredo:

Edwards, após a derrota na eleição presidencial, experimenta uma crise existencial e busca refúgio na ilhota francesa de Mont Saint Michel, ao lado de seu amigo/ex-parceiro Harrimann (que na minha opinião é o prolongamento romantizado da cientista – fato que fica evidenciado pela coincidência da replicação das letras em seus sobrenomes)

Ao reencontrar o amigo e visitar um forte convertido em atração turística, encontra Sonia. Os três entabulam uma animada conversa sobre conceitos científicos que não passa da forma que o autor lançou mão para que tivesse vez o confronto de paradigmas.

A intenção do autor é apontar as falhas no mecanicismo cartesiano onde prevalecia a idéia um tanto matemático-positivista (à Bacon), do funcionamento engendrado do homem, de suas ações e da forma como dispomos dos recursos naturais para satisfazermos nossos modelos de desenvolvimento.

Edwards representa o pragmatismo do ideário neoliberal encetado pelo povo americano e empunhado intransigentemente por seus políticos, que nada mais são que expressões de pensamentos dominantes. Ao querer fazer crer que nos deixamos levar por políticos o autor inverte um raciocínio elementar: a classe política não tem compromisso com ideologias, mas com o poder. Os políticos se moldam, são resilientes, permeáveis, flexíveis.

Todo agente político preza pela sensibilidade do que chamam de “percepção da vontade popular”, ou seja, querem sintonia com os anseios da massa para que se perpetuem no poder. Temos, necessariamente, que nossos políticos são a expressão de um pensamento dominante e não moldadores dele.

Então, a cientista que se auto-renegou por conta do caráter bélico para os quais seus experimentos foram direcionados, passa a confrontá-lo e desdizê-lo, usando fartamente da teoria dos sistemas para demonstrar o quão equivocado é o modelo cartesiano que ainda predomina na organização social humana.

A teoria dos sistemas, pelo que pude aferir de minhas breves pesquisas, é baseada numa suposta “harmonia” do universo e de tudo o que o compõe. Assim, não se há de cogitar inteligência e correção em quaisquer paradigmas que aceitem uma visão do humano como um elemento distinto, desconectado do todo que é o cosmo. Somos parte dele, integrantes dele, componentes de um conjunto harmônico e, se tomarmos consciência e direcionarmos nossas ações neste sentido, haveremos de construir modelos de desenvolvimento mais acertados e sustentáveis, mais factíveis a longo prazo.

Sonia aponta a medicina como exemplo do pragmatismo científico: “A medicina se preocupa em extirpar uma doença, inventar corações artificiais e coisas absurdas quando deveria se preocupar com os hábitos, com os costumes. Porque não combater o consumo de carne vermelha que causa câncer e contribui para a destruição da floresta amazônica, onde as terras são convertidas em pastagens?” e segue dizendo que “educar” as pessoas seria mais barato que operá-las.

A suprema demonstração da pouca profundidade e descuido da obra analisada é a fala da cientista ao indagar o político: “Pegue o Brasil como exemplo. Você sabia que lá eles destroem a floresta amazônica na razão de um campo de futebol por segundo parar criar gado e pagar a dívida externa? Nem têm tempo de vender a madeira. Põem fogo na madeira”. Por tudo o que há de mais inteligente neste planeta: qual a veracidade desta informação?

Ao manipular informações e dar cunho emocional para justificar seu sectarismo, o autor demonstra não ter pudores de escorregar abruptamente no sensacionalismo e desserviço à correta informação.

Quero crer que esta amostra é suficiente para avaliar a quantidade de idéias distorcidas sem escrúpulos para servirem à defesa de uma visão absolutamente individual e inconsistente.

Convido o leitor a considerar uma reflexão sob a tutela de Levi-Strauss, um dos papas da antropologia. O “educar” proferido por Sonia, seria uma política institucional, de Estado mesmo, para a pasteurização dos costumes. O mais grave é a proposta de “universalização” de um modelo ideal de conduta humana.

Enfim, o que Capra coloca na boca de sua personagem é: “por que não destruímos todas as singularidades e idiossincrasias dos humanos e os transformamos em máquinas comportadinhas e cartesianas que viverão mais e melhor?”, vê?

Outro ponto que demonstra a fragilidade e a natureza puramente retórica e egoísta de Capra é na verdade, a recorrência com que o poeta e a cientista acusam o político de narcisismo.

Ora, novamente. Narcisista seria o político engajado que, embora equivocado, defende seus ideais e dedica sua vida a causas nas quais acredita ou figuras como a cientista e o poeta que, em seu sumo egoísmo e covardia, do alto de suas “pobrezas financeiras gritantes”, compram tranqüilas propriedades em uma ilha no sul da França e se isolam para poder usufruir de toda sua inteligência superior e seus “altruísmos infinitos”?

Para finalizar, quero convidar ao debate da pedra filosofal da Teoria dos Sistemas: a harmonia. “O universo é um todo e Descartes estava absurdamente equivocado ao considerar que a parte remete à totalidade.”

Não é preciso muito raciocínio para concordar que o cartesianismo não se sustenta, principalmente quando tem que dar conta das ciências sociais, posteriores à sua existência.

Entretanto, é imaturo, ingênuo e grosseiro falar em totalidades. Novamente, Capra se revela positivista! Ao desprezar a racionalidade, o autor do livro que originou o filme, considera que até mesmo a subjetividade é parte do universo (PANTEÍSMO), e retroage aos princípios do desenvolvimento da Psicologia, querendo fazer crer que Wundt é que estava certo ao dizer que a consciência (o que dirá de uma eventual inconsciência), não é relevante.

Como? Se Capra defende, através de sua personagem, que somos parte de um conjunto, é forçoso reconhecer que não há livre arbítrio, não há individualidade, singularidade. Não estou sendo original nesta fala. Basta uma breve análise das palavras de Baruch Spinoza para aferir este raciocínio.

Aquele fenômeno singular e indefinível pela ótica racionalista, segundo o emérito psicólogo-filósofo-sociólogo alemão Norbert Elias, inexiste na Teoria dos Sistemas.

A idéia antiga de que fenômenos como a sociedade e a cultura são naturais é um dos equívocos mais elementares do pensamento humano. Nossas formas de expressão e de organização são contingentes, nada mais.

Não há um desígnio divinal ou resolução de uma ou mais pessoas dizendo que as coisas deveriam ser assim. O que há, tão somente, é a ocorrência que assim se deu e se dá. Poderia ser de muitas outras formas, fossem outras as variáveis incidentes no objeto.

Situando a obra em seus contextos histórico, cultural e social temos uma série de facilitadores para a compreensão do discurso de Fritjof Capra: em plena Guerra Fria, avolumavam-se as convicções do homem transcendente e simbiótico com a natureza - discurso mais facilmente encontrado nos ideários hyppies. Era uma época onde o que valia era ser um “outsider”, um descolado, alternativo. A ordem era a transposição do rigor lógico, do pragmatismo.

Felizmente, todos sabem que esta época passou.

O paradigma de Capra, baseado na harmonia afetiva do ser humano com a Gaya (mãe terra dos gregos), parte dela que somos, é utopia e simplismo.

Opto e me valho de Kant e sua assertiva de que não somos e nunca seremos capazes de atingir a realidade. Tudo o que fazemos é interpretá-la em nossas limitações, através de nossos filtros sensoriais e perceptivos (paradigmas).

Há, então, as limitações dos sentidos (só ouvimos uma ínfima parte do escopo de sons existentes, enxergamos uma gama pequena de cores e coisas, temos um olfato precário e um tato rudimentar), e, principalmente, os filtros perceptivos (paradigmas), que determinarão o que perceberemos.

Assim, se nossos sentidos já são pouco eficientes, nossa percepção será ainda menor, dado que os paradigmas eliminam tudo o que está em desacordo com nossas crenças insuspeitas.

Daí que se acende o poeta dizendo que pedras falam e que medusas vestem e que Pablo Neruda é o máximo, ou seja, no final não há final, exceto a prudência do vate em se auto-rotular “fool”, e dizer melancolicamente que “a vida é maior que eu e você”.

Não, não é. A exemplo de Spinoza, creio que a vida e quaisquer outras coisas dessa ordem, não têm a ver com seres humanos. Crer que há vida, que há transcendência e sentido, crer que há ordem, são necessidades nossas, não do universo.

Nossa incapacidade perceptiva e cognitiva une-se à nossa arrogância e pretensão ao elaborarmos nossos desejos de explicar isto ou aquilo. Nos é inconcebível e insuportável aceitarmos que, simplesmente, nada do que há além de nós nos é afeito.

Queremos crer que o Cosmo também padece de nossos males. Queremos crer que somos relevantes. Queremos crer que somos parte de algo! Queremos crer que existimos e transcendemos!

Queremos crer que pensar e produzir coisas como as expostas no filme aqui analisado, nos convalida. Mas receio que sejam meros exercícios agônicos de megalomania.

O que nos resta do filme, de fato, é a demonstração de que paradigmas limitam, tolhem e reduzem o ser humano ao seu papel de perpetuador de um caos de si e para si.


Nota do Autor: a leitura do termo “singularidade” neste trabalho, deve ter a conotação apropriada. O ser humano é singular não por ser diferenciado e único, mas por ser de tal forma limitado que sequer alcança a uniformidade com seus pares. Sua sujeição à referida sensorialidade rudimentar e à percepção precária é distorcida por um movimento de suportabilidade que remete à sua necessidade de relevância e pendor romântico. Daí a distorção em seu benefício do que é defeituoso. Singulares e únicos derivados de seu barbarismo, são nomeados por virtudes e belezas. É nosso melhor artifício de suportabilidade.



Referências Bibliográficas

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

SPINOZA, Baruch. Tratado da Correção do Intelecto – Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974.

OLIVEIRA, José Renato Gomes. Ciência e Política em Ponto de Mutação. Disponível em http://www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/resenha-ciencia-politica-ponto-mutacao-jose-renato-oliveira.pdf. Acessado em 22.nov.2007.

sábado, 28 de junho de 2008

“Fahrenheit - 11 de Setembro” e a Identidade Social

Introdução

A pretensão deste trabalho é desenvolver uma análise do conceito de identidade social segundo duas das principais linhas teóricas da psicologia social contemporânea (Teoria das Representações Sociais e Psicologia Social Sócio-Histórica), tomando por base uma peça cinematográfica onde se identifiquem elementos suficientes para que a abordagem reste satisfatória e representativa dos principais construtos que compõem as teorias envolvidas.

Perpassar as noções de categorização, estereótipo, atitudes, valoração, preconceito, grupos de pertença e exogrupo, por um lado, e dialética de classes, relações de poder, força de trabalho, controle dos meios de produção material e meio sócio-cultural, por outro, será o caminho que trilharemos para o que acreditamos ser a melhor forma que nos é atualmente possível para a consecução desta tarefa.

Tendo analisado algumas películas cinematográficas que poderiam ser convenientes ao trabalho ora proposto, nos deparamos com o primeiro grande questionamento: que caráter deve ter a película para que logremos êxito?

A resposta, embora não consensual entre os membros do grupo, foi pela escolha de um filme cujo conteúdo nos permitisse uma visão crítica dos moldes de nossas formas sociais vigentes.

Dentre as várias opções das produções cinematográficas que convertem estética e discursivamente os cenários do universo factual para aquele formato socialmente aceito das produções audiovisuais às quais estamos habituados, esbarramos em “Fahrenheit – 11 de Setembro”, um documentário!

Produzido, dirigido e realizado por Michael Moore, “Fahrenheit” é um protesto político contra o atual presidente norte-americano e toda o pragmatismo neoliberal personificado por ele, expoente que é do povo em questão. Venceu Cannes, o maior festival de cinema do mundo e apresentou aos países marginais, ou seja, todos os que não são os Estados Unidos da América (segundo a leitura dos estadunidenses), uma visão absolutamente sectária e oposicionista que opõem as duas fatias da sociedade americana na atualidade: os beligerantes e os alienados.

Foi a riqueza dos exemplos de estereótipos, o discurso permeado de defesas e ataques atitudinais, a inundação de categorizações e o desfile de preconceitos que nos conduziram à escolha de “Farenheit”.

Ademais, ao escolhermos este documentário, produzido e reproduzido pela grande potência econômica e bélica da atualidade, abrimos um imenso leque de possibilidades de análise do discurso dos dominadores e maiores beneficiários do sistema econômico de plena exploração capitalista, o motivador maior das críticas do materialismo-histórico marxista, nascedouro da Psicologia Social Sócio-Histórica.

Eis o preâmbulo das digressões que virão. As premissas sobre as quais ancoraremos o desenvolvimento do presente trabalho.



1. A Identidade Social em duas linhas teóricas

A Identidade Social é um construto comum a diversas linhas teóricas da Psicologia Social e, no presente trabalho, nos interessará sua configuração em duas específicas: a das Representações Sociais (TRS), predominante nos cenários norte-americano e europeu, e a da Psicologia Social Sócio-Histórica preponderante na América Latina.

1.1. A Identidade Social na TRS
Foi com o Serge Moscovici, psicólogo social polonês radicado na França, que o paradigma norte-americano (e sua terminologia inaugurada por Erwing Goffman), que reinou absoluto na Psicologia Social foi substancialmente enriquecido e transformado.

Até a propositura do eminente polonês, a Psicologia Social baseava-se na perspectiva intrapsiquica, ou seja, o fenômeno social era visto como a soma das percepções individuais dos sujeitos que compunham determinado núcleo social isolado para fins de pesquisa.

Com a Teoria das Representações Sociais, uma releitura com aprofundamento e aperfeiçoamento do que já haviam produzido Kurt Lewin, Gordon Allport, Solomon Asch, Fritz Heider e outros, Moscovici reifica um fenômeno dado por natural e desprezível no âmbito das ciências que tratam das relações sociais ao preconizar que:

“conceitos que operam em grandes profundidades parecem necessitar mais de cinqüenta anos para penetrar as camadas mais baixas da comunidade científica. É por isso que muitos de nós estamos apenas agora começando a perceber o sentido de certas idéias que estiveram germinando na sociologia, psicologia e antropologia, desde o limiar desse século.” (Moscovici, 1984b:941).

E é neste escaninho prenunciado por Durkheim, Weber, Marx (na sociologia), sondado por Bronislau Malinowski e buscado por Wundt e outros psicólogos das primeiras gerações, que se desenvolverá a Psicologia Social Européia, notadamente, as da Escola de Bristol (Tajfel, Sherif, Turner e outros), e a Escola de Genebra (Doise, Deschamps e outros), sempre baseadas no pioneirismo de Moscovici e seus questionamentos decorrentes do frenesi psicanalítico na França dos anos de 1960.

Desta forma, temos que as representações sociais:

“designam formas de entendimento largamente partilhadas por um grupo fortemente estruturado (uma nação, um partido, uma igreja), e que estruturam o grupo. Estas representações são uniformes, indiscutíveis e coercivas (por exemplo, a representação do indivíduo como uma entidade autônoma e livre). (VALA, 2004, pg. 463).

Por paradoxal que possa parecer a afirmação de Vala, é da representação social, portanto, que emerge o sujeito, ainda que esta própria sociedade preconize que não há similaridade absoluta entre seus componentes, ou seja, ainda que ela proponha que o ser humano é um ser singular, individual e incomparável.

Melhor elaboração para este conflito essencial nos dá Daniel Bar-Tal ao sustentar que “a resposta à pergunta <> encerra a resposta a uma outra pergunta: <<>>” (Bar-Tal, 1990, apud Vala, 2004, pg. 498).

Assim e, para concluir este tópico, podemos tipificar a Identidade Social na perspectiva da Teoria das Representações Sociais, como uma construção indissociável ao caráter grupal do ser social.

O movimento de adesão, pelo sujeito, aos grupos sociais de seu meio tem por pressuposto a aceitação de suas estruturas categoriais e suas derivantes estereotípicas, provocando no sujeito a percepção de pertença e a adoção de atitudes que implicarão em suas conseqüentes valorações.


1.2 A Identidade Social na Psicologia Social Sócio-Histórica

O paradigma sócio-histórico na Psicologia latino-americana é resultado de amplo processo de penetração do ideário marxista neste continente em meados da década de 1970, reflexo da ainda tímida abertura política e econômica do bloco socialista europeu e asiático que permitiu o contato com novas formas de pensamento na Psicologia, notadamente, com Lev Vygotsky e seus parceiros.

Vivendo em um ambiente estruturado de acordo com o ideário que orienta para o percebimento das relações humanas como o resultado histórico da dialética das classes visando o controle das forças de trabalho e, conseqüentemente, do monopólio do poder, os teóricos da Psicologia russa desenvolveram toda uma escola de pensamento que apontava para o enquadramento do ser humano através do método materialista-histórico.

Adaptando-o para o viés condizente com o marxismo, qual seja da superação das formas individualistas de percebimento do humano e o realce da coletividade como forma “natural” e elementar de existência, chegou-se à designação da Psicologia sócio-histórica, onde o humano é caracterizado por produto e produtor de um meio social marcado por sua significação cultural e histórica e denotado como condicionado pela mediação econômica das relações interpessoais.

É isto que nos preceitua Kohl ao afirmar que “a idéia do ser humano como imerso num contexto histórico e a ênfase em seus processos de transformação também são proposições muito importantes no ideário contemporâneo” (KOHL, 1997, p.14).

Note-se, convenientemente, que os “processos de transformação” aos quais a autora se refere, são aqueles realizados pelo humano no meio ambiente através do trabalho, afirmativa na qual somos embasados por Cristina Machado de Oliveira que, ao analisar Marx, assevera que:

Uma outra visão do trabalho, a qual ultrapassa o sentido antropológico, é de cunho teórico-gnosiológico, isto é, o trabalho social aparecendo como uma categoria da teoria do conhecimento. Esta implica numa inversão da teoria do conhecimento tradicional, onde a relação sujeito-objeto não é mais abstrata; é antes de tudo, uma ligação prática construída no e pelo trabalho. Assim, o trabalho é tido com um significado concreto, de transformação da realidade.

Na Psicologia Social Sócio-Histórica, portanto, o humano não deve mais ser tido como o sujeito dotado da individualidade secular que se erigiu a partir das revoluções de Lutero e Calvino e foi lapidada durante séculos até alcançar sua transcendência para o abstrata em Kant e, finalmente – para nossos propósitos, sua objetividade material em Marx.

O ser humano de Vygotsky, Luria e Leontiev está assentado na constatação de que “o funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior, as quais desenvolvem-se num processo histórico.” (KOHL, 1997,p.23).

O que justifica a existência de uma Psicologia Social Sócio-Histórica como alternativa às outras linhas teóricas estabelecidas – com ênfase para a Teoria das Representações Sociais, é sua proposição de que só serão factíveis os processos psicológicos intrapsiquicos através de sua precedente significação social, ou seja, o humano só será capaz de se perceber como uma entidade individual e dicotômica do meio após receber as devidas ferramentas de seu meio social.

Se para as Representações Sociais o humano adere a um sistema socialmente dado, para os sócio-históricos o humano só existirá porque o meio o concebe, concede-lhe uma identidade e a instrui.

2. Fahrenheit – 11 de Setembro (Sinopse)

No documentário Fahrenheit – 11 de Setembro (premiado como o melhor filme do ano de 2004 no Festival de Cannes – França), o renomado Michael Moore (ganhador do Oscar de melhor documentário em 2003 com Bowling for Columbine), busca um enfoque investigativo e crítico para a política neoliberal norte-americana, apresentando ao público uma versão alternativa que pretende desvendar as reais motivações econômicas que levaram aos atentados terroristas contra os prédios do World Trade Center, em Manhattan – Estados Unidos da América, no ano de 2001 e das represálias estatais contra o Afeganistão e, principalmente, contra o Iraque.

A película nos interessa, sobretudo, por deslindar a estratégia de manipulação do poder e de convencimento do imenso contingente de governados para a necessidade de retaliações violentas contra alvos fixados artificialmente, sob a bandeira de uma cruzada “mundial” contra nações inteiras tipificas como “terroristas” e “contrárias à liberdade”.

Foi assim que, após os ataques que deixaram cerca de três mil mortos nos dois prédios do World Trade Center – e mais algumas dezenas de corpos na investida contra o prédio das centrais militares norte-americanas, conhecido como Pentágono, o governo americano se mobilizou para azeitar suas máquinas de propaganda e guerra, duas das grandes locomotivas da maior economia mundial. Mas como poderia nos interessar na seara da Psicologia Social?

A resposta a esta pergunta, segundo debate dos membros do grupo de trabalho, resta elementar. Guerras implicam em mobilização e apoio. Não se pode lançar toda uma nação a uma luta sem que haja a convicção de que, em primeiro lugar, há um inimigo a se combater e, não menos importante, há um risco em potencial que justifica a luta.

Neste sentido, o filme é prodigioso em fontes que demonstram, inequivocamente, os esforços governamentais para personificar – ainda que de forma absolutamente intangível, o inimigo e, sobretudo, seu potencial em causar danos ao grupo que se dispõe a guerrear.

2.1. Fahrenheit – 11 de Setembro e a TRS

Com a investida de um grupo de terroristas contra alvos civis em solo norte-americano, foi gerada a sensação de insegurança. Todos os habitantes daquele país julgavam razoável considerar que estavam passíveis de serem atacados. O papel do governo, neste caso, foi o de potencializar esta sensação.

Sob a perspectiva da Teoria das Representações Sociais, configuramos a situação como a oposição, então, de dois grupos distintos. De um lado, temos o grupo dos atacados – os americanos e, do outro, os inimigos terroristas.

Para o convencimento endogrupal as variáveis não nos parecem muito difíceis de identificação. Com o ataque transmitido em tempo real para todo o mundo e a reação de plena impotência e fragilidade dos telespectadores, havia um cenário indiscutivelmente favorável para a disseminação do medo.

Sua potencialização viria com a atuação de agentes que gozavam de autoridade e credibilidade no endogrupo, ou seja, seus governantes e a mídia, grande formadora de opiniões e determinadora de atitudes da atualidade.

O presidente norte-americano, no momento dos ataques, visitava uma escola primária no estado da Flórida. Estava sentado diante de uma platéia de crianças que tinham entre cinco e seis anos de idade quando foi informado por seus assessores de que “o país estava sob ataque terrorista”.

Ainda que somente alguns minutos tivessem decorrido desde que o primeiro avião atingira um dos prédios do World Trade Center, a fala do assessor já demonstrava a repercussão do conteúdo propalado pelos meios de comunicação e a versão extra-oficial do ataque.

Não se tratava, pois, de um “acidente”, um “incidente” ou um episódio isolado. O choque dos aviões contra prédios comerciais norte-americanos, nos dizeres da mídia e na repercussão dos assessores do presidente que estavam milhares de quilômetros distantes do local onde se davam os ataques, eram de antemão, fruto da ação terrorista contra a “nação norte-americana”.

Nos pronunciamentos que se seguiram ao ataque, as autoridades deram o tom de condução das percepções. Foi assim que, alguns dias depois se deu início à caçada antiterrorista, anunciada em bom tom pelo alto escalão do governo norte-americano, como Donald Ramsfeld, secretário de Segurança ao dizer que “entramos no que pode muito bem vir a ser as condições de segurança mais arriscadas que o mundo já conheceu.”

Temos, então, uma situação extremada (como é o caso da grande maioria das situações de conflitos bélicos). Para efeito de apreciação sob os construtos da Teoria das Representações Sociais, os americanos serão aqui classificados como endogrupo e os terroristas como o exogrupo.

O líder do endogrupo foi à mídia dizer, exaustivamente, que “o mundo mudou depois de 11 de Setembro. Mudou por que não estamos mais seguros” (George W. Bush), e os meios de comunicação o acompanharam exemplarmente para amplificar os efeitos dessas falas.

Os grupos categoriais não mais existiam no endogrupo. Não haviam feministas, homoeróticos, negros, brancos, amarelos, deficientes ou normais, apesar de saber que tratamos de uma nação marcada profundamente pelo cunho separatista e excludente.

É evidente que tratamos aqui do que Moscovici chamou de universos referenciais, onde circulam as ciências, a objetividade ou as teorizações abstratas. [1]Neste universo de ancoragem e objetivação, emergem aquelas duas categorias possíveis já referidas: a dos norte-americanos unidos contra o outro grupo, superficialmente identificado como um mal que ainda não fora personificado, portanto, carecia de um estereótipo definido: os “terroristas”.

Henri Tajfel, judeu polonês e grande expoente da Psicologia Social da escola de Bristol, nos ensina que estereótipos são generalizações simplificadores e necessárias:

“a preservação do sistema de categorização e das conotações valorativas que lhe estão associadas, e que são transmitidas pela cultura e pelos valores dos grupos de pertença, é conseguida através do tratamento de critérios classificatórios, como homem-mulher, branco-negro, inglês-francês (...) e que validam um conhecimento ‘subjetivo’ da realidade facilitador da integração dos indivíduos...” (AMÂNCIO, Lígia in VALA, 2004, pg. 392).

E foi pela simplificação e associação que a intangível categoria dos “terroristas”, foi manipulada habilmente para se transformar, num primeiro instante, em árabe e, de forma mais focada, em árabes iraquianos.

A manipulação ora aventada se deu pela difusão do medo. A escala de risco, criado pelo governo americano, aponta níveis que variam de alarme total à normalidade, embora as autoridades sempre mantenham os níveis de alerta nas camadas mais altas da escala de atenção, com os órgãos oficiais (Federal Bureau of Investigation), apontando riscos de ataques com “canetas-bomba”, “aeromodelos explosivos”, “líquidos instáveis” e outras fantasias cinematográficas aberrantes.

A prática da manutenção do medo é eficiente na manutenção do estado de vigília constante, segundo Kim McDermott, psiquiatra e congressita norte-americano que assevera que “o medo funciona. O povo amedrontado faz qualquer coisa. Você faz com que sintam medo criando uma aura de ameaça eterna. Eles (a classe dirigente) nos manipulam.”

Não poderia haver maior prova da assertividade das palavras de McDermott que a impressão de pessoas entrevistadas por Michael Moore na pequena Tappahannock, cidade-vilarejo com pouco mais de dois mil habitantes. Uma senhora de meia-idade, não identificada no filme, afirma que “quando olhos para as pessoas penso: óh, meu Deus. Será que pode ser um terrorista?”, e um borracheiro afirma que tem medo e que “não se deve confiar em ninguém que não se conheça e nem se deve confiar totalmente nem nas pessoas conhecidas.”

O combate aos inimigos norte-americanos, neste caso, começou através de práticas que visavam a instalação de uma intermitente sensação de insegurança. Neste sentido, a maior contribuição para o estado de alerta foi a aprovação quase unânime no Congresso norte-americano, do que acabou sendo chamado de Decreto Patriota, um pacote de leis que cassou direitos civis elementares e restringiu a privacidade dos indivíduos, permitindo ao governo esquadrinhas a vida de quem quer que fosse sem autorização judicial ou maiores burocracias.

Ainda assim, as medidas tiveram grande adesão do grupo e apoio dos partidos de oposição aos dirigentes. Nas ruas, Michael Moore entrevistou pessoas e colheu depoimentos como a de uma jovem que dizia que: “(o decreto patriota) é, sem dúvida, triste, mas tem que ser feito.”

A sensação de insegurança é indispensável para unir o grupo em torno de uma questão que deve ser consensual. Entretanto, o governo norte-americano, apoiado por seu povo, não poderia lançar uma ofensiva indistintamente contra todos os árabes do mundo. Inimigos invocam materialidades. O próprio conceito de inimigo invoca a necessidade de personificação.

Façamos um pequeno exercício de construção de estereótipos para exemplificar seu caráter generalizante e simplista. Imagine uma conversa entre um influente dirigente norte-americano e sua comunidade.

- Quem são os terroristas? – São, inequivocamente, árabes. E quem são os árabes? – São os habitantes do Oriente Médio. – Bombardearemos, então, todo o Oriente Médio? – Não! Há lá mais de uma dezena de países, inclusive, muitos amigos de nosso regime e fornecedores de capital e insumos para nossa economia. – E quem são, então, os árabes que não mantêm relações amistosas com o povo norte-americano? – São iranianos e iraquianos. – A quem devemos atacar? Onde estão os terroristas? – Não sabemos ao certo. Os iranianos são hostis, mas não têm potencial bélico ou econômico que nos afete. – E os iraquianos? – São igualmente hostis, porém, detêm imensas reservas de petróleo. Nossa economia enfrenta uma crise moderada há mais de duas décadas por conta dos altos custos do petróleo e do consumo doméstico desenfreado. – Então, são hostis e ainda prejudicam nossa economia? Esses iraquianos são uns “terroristas”.

A guerra travada pelos americanos contra o regime iraquiano que invadiu o Kuwait no início da década de 1990 e terminou sem mudança no status geopolítico da região, recrudesceu. As autoridades norte-americanas passaram a insistir (contradizendo o que haviam afirmado a menos de dez meses), que o Iraque possuía grande arsenal de armas químicas capazes de causar grande destruição em solo americano.

A associação entre terroristas e iraquianos foi difundida e devidamente assimilada e repetida por todos os cantos dos Estados Unidos da América e, meses depois, a investida militar que dura até nossos dias, arrasou todo o Iraque, matando indistintamente. Os dados oficiais divergem como em qualquer situação de conflito, porém, as autoridades iraquianas (governo empossado pelos norte-americanos), estimam em cento e cinqüenta mil o número de mortos civis desde o início da guerra (é inimaginável como se produzem tantos terroristas no Oriente Médio), embora a Organização das Nações Unidas defenda que o número real de mortos em função dos ataques seja, no máximo, inferior a cem mil. Talvez tenhamos aí um bom indício, factual, de porque os iraquianos terem construído para si o estereótipo do povo norte-americano como “terroristas” que buscam controlar suas reservas de petróleo.

A sustentação da ofensiva é, nitidamente, midiática e bem conduzida, o que nos remete aos estudos de comunicação persuasiva. Para Clifford e Walster (1973), os comunicadores bonitos são mais atraentes e inspiram confiança, além de serem mais influentes do que comunicadores menos atraentes (Chaiken, 1979). Ditas da forma correta e por uma personalidade que esteja próxima ao grupo (Kelley, 1955), as palavras de George W. Bush soam como “naturais”, ainda que ele diga que é “o presidente da guerra. Tomo decisões sobre política externa com a guerra em mente.”

Esperamos, com isto, ter demonstrado como se dá o processo da construção da identidade social na teoria das Representações Sociais, com a adesão dos sujeitos aos conceitos vigentes ao seu meio social e a tomada de atitudes baseada nas construções coletivas. Embora tenhamos usado um exemplo extremado que envolve algo em torno de duzentos e trinta milhões de pessoas (a população americana, os países aliados e a população iraquiana), é importante salientar que os estudos da TRS se deram, principalmente, em ambientes de microgrupos e que os conceitos são aqui generalizados.

2.2. Fahrenheit – 11 de Setembro e a Psi Social Sócio-Histórica

Já na perspectiva da Psicologia Social Sócio-Histórica, teremos que considerar os aspectos discordantes com relação à TRS. Se para esta as representações sociais são entidades autônomas (que em certo ponto lembram Durkheim e suas representações coletivas) para aquela a estruturação do meio em que os humanos estão inseridos é materialista-histórica, ou seja, conduzida sob o estigma da luta pelo controle dos meios de produção econômica e embate das classes sociais (dialética), e que a compreensão dos fatos humanos só é possível se considerados à luz da significação histórica que lhe dá sentido.

Como visto em Vygotsky, toda relação do sujeito com o meio é mediada por instrumentos e signos dados sócio-culturalmente, visando a transformação da natureza pelo trabalho.

Portanto, nos sócio-históricos teremos o humano como constituído e constituinte da realidade objetiva que o cerca, através da utilização daqueles instrumentos e signos que tiveram sua gênese como demanda por organização, demanda de um problema psicológico dado.

Neste aspecto a apreciação de Fahrenheit ganha contornos atraentes e repletos de significações para nossos contemporâneos, pois, como asseverado anteriormente, a própria guerra contra os terroristas iraquianos (foco do filme), é nada mais que uma manobra pelo controle do insumo mais importante para a manutenção do poder econômico norte-americano e do padrão de consumo naquele país.

Todo o discurso de defesa da liberdade, de restabelecimento da segurança e da difusão do padrão moral egocêntrico cultivado nos Estados Unidos da América passa a ser aos olhos da Psicologia Social Sócio-Histórica, mera retórica que acoberta aquela dialética marxista.

Dado o iminente risco de adotarmos o discurso pertinente ao ideário de Karl Marx que já não goza de tanto prestígio quanto nas épocas românticas da militância política do pós-guerras em todo o mundo, preferimos a reorientação de nossas digressões.

A individuação das histórias, portanto, passa a ser conveniente para aqueles que se querem crer singulares, muito embora todo o cenário analisado com isenção remeta à conclusão de que há, sim, um traço comum muito mais relevante e determinante de conduta do que se quer reconhecer e isto é chamado por muitos de cultura.

A estranheza causada nas pessoas que têm por “natural” o raciocínio respaldado no Iluminismo que entronou a individualidade e depois o endeusou em Nietzsche, pode ser de difícil clarificação, mas não é incompreensível sob a luz da racionalidade da proposta sócio-histórica que propõem o humano como construído e estabelecido como uma instituição temporal, portanto, mutável e contingente às necessidades e possibilidades do seu tempo, como nos permite aferir a leitura enviesada de Michael Moore no filme aqui analisado.


3. Conclusão

Apesar da aparente adoção de uma postura favorável ao postulado sócio-histórico, nos é evidente que não temos subsídios para explanar adequadamente sobre o assunto, quiçá, enveredar em juízos de valor quanto à supremacia de um modelo teórico sobre outro.

Como bem nos ensina Serres:

“Em ciência, moralidade ou política, assim como nas artes, às vezes nos sentimos inclinados a pronunciar uma sentença que, a despeito de ser prima facie falsa, parece iluminadora e frutífera. Tais sentenças são, no início de suas carreiras, “meras metáforas”. Mas algumas metáforas são “bem-sucedidas”, na medida em que as consideramos tão atraentes que tentamos torná-las candidatas a crenças, a verdades literais. Fazemos isto redescrevendo a porção da realidade nos termos sugeridos pela sentença nova, surpreendente, metafórica”. (SERES, 1994, p. 124 apud ARENDT, Ronald in MANCEBO, Deise. 2004, p.31).

Temos, então, que a presente análise resta um exercício de construção de saberes e de preambulação de um conhecimento que vislumbramos profundamente preponderante no prosseguimento de nossa formação acadêmica.

Antes de fornecer-nos uma alternativa para a interpretação de uma realidade objetiva que só é apreensível pelos partidários do racionalismo próprio às ciências naturais, este trabalho nos dá a percepção de que sempre há formas de enriquecer reflexões e de elaborar com maior cuidado construções que nos parecem naturais e acabam por se demonstrar anacrônicas, inconvenientes, incompletas e distorcidas.

Por seu caráter introdutório e didático, julgamos a iniciativa indiscutivelmente válida e frutífera.



4. Bibliografia

MANCEBO, Deise et al. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: Aprendizado e Desenvolvimento – um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 2000.

STREY, Marlene Neves et al. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

VALA, Jorge; MONTEIRO, Maria Benedicta. Psicologia Social. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

FAHRENHEIT – 11 DE SETEMBRO. Michael Moore. Estados Unidos da América: Europa Filmes, 2005. DVD, 122 minutos, NTSC, Dolby Digital, colorido, legendado.

[1] OLIVEIRA, Fátima. Psicologia Social Contemporânea. 1998, pg. 108