terça-feira, 27 de janeiro de 2009

PONTO DE MUTAÇÃO

*Análise do filme "Ponto de Mutação" sob as visões de paradigma segundo Morin e Capra.

Se por um lado, Morin pretende que paradigmas sejam “princípios ‘supralógicos’ de organização do pensamento, princípios ocultos que governam nossa visão de mundo, que controlam a lógica de nossos discursos, que comandam nossa seleção de dados significativos, sem que tenhamos a consciência disto”, Capra os define como “a totalidade de pensamento, percepções e valores que formam uma determinada visão da realidade, que a base do modo como uma sociedade se organiza.”

Não posso deixar de manifestar minha predileção pela conceituação de Edgar Morin. Creio que paradigmas suplantam a natureza lógica do pensamento, precedendo-os e desdobrando-se mais como condicionantes ou orientadores-reguladores, características desprezadas por Fritjof Capra. Ao dizer que paradigmas são “totalidades de pensamento”, Capra demonstra sectarismo e um inegável espírito de simplificação e esoterismo que permeará sua obra. Todavia, como abordamos a versão cinematográfica do trabalho deste, me aterei às elucubrações à luz de sua conceituação.

Tendo resolvido a definição que nos interessa aqui, situemos as personagens do filme:

1. Sonia Hoffmann – física e cientista em auto-exílio impulsionado por conflitos morais em torno da utilização de seus trabalhos para aplicações militares. Seu paradigma é o da Teoria dos Sistemas, defendido por Capra, Gregory Bateson, Humberto Maturama e outros.

2. Jack Edwards – senador americano, candidato derrotado à presidência cujos paradigmas podem ser classificados como: cartesiano e newtoniano, pragmático liberal.

3. Thomas Harrimann – poeta em auto-exílio como Sonia, fugindo dos padrões de vida nova-iorquinos aos quais não se adapta. Paradigmas: romântico, parnasiano, alienado e omisso.

Agora, sim. Vamos ao enredo:

Edwards, após a derrota na eleição presidencial, experimenta uma crise existencial e busca refúgio na ilhota francesa de Mont Saint Michel, ao lado de seu amigo/ex-parceiro Harrimann (que na minha opinião é o prolongamento romantizado da cientista – fato que fica evidenciado pela coincidência da replicação das letras em seus sobrenomes)

Ao reencontrar o amigo e visitar um forte convertido em atração turística, encontra Sonia. Os três entabulam uma animada conversa sobre conceitos científicos que não passa da forma que o autor lançou mão para que tivesse vez o confronto de paradigmas.

A intenção do autor é apontar as falhas no mecanicismo cartesiano onde prevalecia a idéia um tanto matemático-positivista (à Bacon), do funcionamento engendrado do homem, de suas ações e da forma como dispomos dos recursos naturais para satisfazermos nossos modelos de desenvolvimento.

Edwards representa o pragmatismo do ideário neoliberal encetado pelo povo americano e empunhado intransigentemente por seus políticos, que nada mais são que expressões de pensamentos dominantes. Ao querer fazer crer que nos deixamos levar por políticos o autor inverte um raciocínio elementar: a classe política não tem compromisso com ideologias, mas com o poder. Os políticos se moldam, são resilientes, permeáveis, flexíveis.

Todo agente político preza pela sensibilidade do que chamam de “percepção da vontade popular”, ou seja, querem sintonia com os anseios da massa para que se perpetuem no poder. Temos, necessariamente, que nossos políticos são a expressão de um pensamento dominante e não moldadores dele.

Então, a cientista que se auto-renegou por conta do caráter bélico para os quais seus experimentos foram direcionados, passa a confrontá-lo e desdizê-lo, usando fartamente da teoria dos sistemas para demonstrar o quão equivocado é o modelo cartesiano que ainda predomina na organização social humana.

A teoria dos sistemas, pelo que pude aferir de minhas breves pesquisas, é baseada numa suposta “harmonia” do universo e de tudo o que o compõe. Assim, não se há de cogitar inteligência e correção em quaisquer paradigmas que aceitem uma visão do humano como um elemento distinto, desconectado do todo que é o cosmo. Somos parte dele, integrantes dele, componentes de um conjunto harmônico e, se tomarmos consciência e direcionarmos nossas ações neste sentido, haveremos de construir modelos de desenvolvimento mais acertados e sustentáveis, mais factíveis a longo prazo.

Sonia aponta a medicina como exemplo do pragmatismo científico: “A medicina se preocupa em extirpar uma doença, inventar corações artificiais e coisas absurdas quando deveria se preocupar com os hábitos, com os costumes. Porque não combater o consumo de carne vermelha que causa câncer e contribui para a destruição da floresta amazônica, onde as terras são convertidas em pastagens?” e segue dizendo que “educar” as pessoas seria mais barato que operá-las.

A suprema demonstração da pouca profundidade e descuido da obra analisada é a fala da cientista ao indagar o político: “Pegue o Brasil como exemplo. Você sabia que lá eles destroem a floresta amazônica na razão de um campo de futebol por segundo parar criar gado e pagar a dívida externa? Nem têm tempo de vender a madeira. Põem fogo na madeira”. Por tudo o que há de mais inteligente neste planeta: qual a veracidade desta informação?

Ao manipular informações e dar cunho emocional para justificar seu sectarismo, o autor demonstra não ter pudores de escorregar abruptamente no sensacionalismo e desserviço à correta informação.

Quero crer que esta amostra é suficiente para avaliar a quantidade de idéias distorcidas sem escrúpulos para servirem à defesa de uma visão absolutamente individual e inconsistente.

Convido o leitor a considerar uma reflexão sob a tutela de Levi-Strauss, um dos papas da antropologia. O “educar” proferido por Sonia, seria uma política institucional, de Estado mesmo, para a pasteurização dos costumes. O mais grave é a proposta de “universalização” de um modelo ideal de conduta humana.

Enfim, o que Capra coloca na boca de sua personagem é: “por que não destruímos todas as singularidades e idiossincrasias dos humanos e os transformamos em máquinas comportadinhas e cartesianas que viverão mais e melhor?”, vê?

Outro ponto que demonstra a fragilidade e a natureza puramente retórica e egoísta de Capra é na verdade, a recorrência com que o poeta e a cientista acusam o político de narcisismo.

Ora, novamente. Narcisista seria o político engajado que, embora equivocado, defende seus ideais e dedica sua vida a causas nas quais acredita ou figuras como a cientista e o poeta que, em seu sumo egoísmo e covardia, do alto de suas “pobrezas financeiras gritantes”, compram tranqüilas propriedades em uma ilha no sul da França e se isolam para poder usufruir de toda sua inteligência superior e seus “altruísmos infinitos”?

Para finalizar, quero convidar ao debate da pedra filosofal da Teoria dos Sistemas: a harmonia. “O universo é um todo e Descartes estava absurdamente equivocado ao considerar que a parte remete à totalidade.”

Não é preciso muito raciocínio para concordar que o cartesianismo não se sustenta, principalmente quando tem que dar conta das ciências sociais, posteriores à sua existência.

Entretanto, é imaturo, ingênuo e grosseiro falar em totalidades. Novamente, Capra se revela positivista! Ao desprezar a racionalidade, o autor do livro que originou o filme, considera que até mesmo a subjetividade é parte do universo (PANTEÍSMO), e retroage aos princípios do desenvolvimento da Psicologia, querendo fazer crer que Wundt é que estava certo ao dizer que a consciência (o que dirá de uma eventual inconsciência), não é relevante.

Como? Se Capra defende, através de sua personagem, que somos parte de um conjunto, é forçoso reconhecer que não há livre arbítrio, não há individualidade, singularidade. Não estou sendo original nesta fala. Basta uma breve análise das palavras de Baruch Spinoza para aferir este raciocínio.

Aquele fenômeno singular e indefinível pela ótica racionalista, segundo o emérito psicólogo-filósofo-sociólogo alemão Norbert Elias, inexiste na Teoria dos Sistemas.

A idéia antiga de que fenômenos como a sociedade e a cultura são naturais é um dos equívocos mais elementares do pensamento humano. Nossas formas de expressão e de organização são contingentes, nada mais.

Não há um desígnio divinal ou resolução de uma ou mais pessoas dizendo que as coisas deveriam ser assim. O que há, tão somente, é a ocorrência que assim se deu e se dá. Poderia ser de muitas outras formas, fossem outras as variáveis incidentes no objeto.

Situando a obra em seus contextos histórico, cultural e social temos uma série de facilitadores para a compreensão do discurso de Fritjof Capra: em plena Guerra Fria, avolumavam-se as convicções do homem transcendente e simbiótico com a natureza - discurso mais facilmente encontrado nos ideários hyppies. Era uma época onde o que valia era ser um “outsider”, um descolado, alternativo. A ordem era a transposição do rigor lógico, do pragmatismo.

Felizmente, todos sabem que esta época passou.

O paradigma de Capra, baseado na harmonia afetiva do ser humano com a Gaya (mãe terra dos gregos), parte dela que somos, é utopia e simplismo.

Opto e me valho de Kant e sua assertiva de que não somos e nunca seremos capazes de atingir a realidade. Tudo o que fazemos é interpretá-la em nossas limitações, através de nossos filtros sensoriais e perceptivos (paradigmas).

Há, então, as limitações dos sentidos (só ouvimos uma ínfima parte do escopo de sons existentes, enxergamos uma gama pequena de cores e coisas, temos um olfato precário e um tato rudimentar), e, principalmente, os filtros perceptivos (paradigmas), que determinarão o que perceberemos.

Assim, se nossos sentidos já são pouco eficientes, nossa percepção será ainda menor, dado que os paradigmas eliminam tudo o que está em desacordo com nossas crenças insuspeitas.

Daí que se acende o poeta dizendo que pedras falam e que medusas vestem e que Pablo Neruda é o máximo, ou seja, no final não há final, exceto a prudência do vate em se auto-rotular “fool”, e dizer melancolicamente que “a vida é maior que eu e você”.

Não, não é. A exemplo de Spinoza, creio que a vida e quaisquer outras coisas dessa ordem, não têm a ver com seres humanos. Crer que há vida, que há transcendência e sentido, crer que há ordem, são necessidades nossas, não do universo.

Nossa incapacidade perceptiva e cognitiva une-se à nossa arrogância e pretensão ao elaborarmos nossos desejos de explicar isto ou aquilo. Nos é inconcebível e insuportável aceitarmos que, simplesmente, nada do que há além de nós nos é afeito.

Queremos crer que o Cosmo também padece de nossos males. Queremos crer que somos relevantes. Queremos crer que somos parte de algo! Queremos crer que existimos e transcendemos!

Queremos crer que pensar e produzir coisas como as expostas no filme aqui analisado, nos convalida. Mas receio que sejam meros exercícios agônicos de megalomania.

O que nos resta do filme, de fato, é a demonstração de que paradigmas limitam, tolhem e reduzem o ser humano ao seu papel de perpetuador de um caos de si e para si.


Nota do Autor: a leitura do termo “singularidade” neste trabalho, deve ter a conotação apropriada. O ser humano é singular não por ser diferenciado e único, mas por ser de tal forma limitado que sequer alcança a uniformidade com seus pares. Sua sujeição à referida sensorialidade rudimentar e à percepção precária é distorcida por um movimento de suportabilidade que remete à sua necessidade de relevância e pendor romântico. Daí a distorção em seu benefício do que é defeituoso. Singulares e únicos derivados de seu barbarismo, são nomeados por virtudes e belezas. É nosso melhor artifício de suportabilidade.



Referências Bibliográficas

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

SPINOZA, Baruch. Tratado da Correção do Intelecto – Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974.

OLIVEIRA, José Renato Gomes. Ciência e Política em Ponto de Mutação. Disponível em http://www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/resenha-ciencia-politica-ponto-mutacao-jose-renato-oliveira.pdf. Acessado em 22.nov.2007.