sábado, 28 de junho de 2008

“Fahrenheit - 11 de Setembro” e a Identidade Social

Introdução

A pretensão deste trabalho é desenvolver uma análise do conceito de identidade social segundo duas das principais linhas teóricas da psicologia social contemporânea (Teoria das Representações Sociais e Psicologia Social Sócio-Histórica), tomando por base uma peça cinematográfica onde se identifiquem elementos suficientes para que a abordagem reste satisfatória e representativa dos principais construtos que compõem as teorias envolvidas.

Perpassar as noções de categorização, estereótipo, atitudes, valoração, preconceito, grupos de pertença e exogrupo, por um lado, e dialética de classes, relações de poder, força de trabalho, controle dos meios de produção material e meio sócio-cultural, por outro, será o caminho que trilharemos para o que acreditamos ser a melhor forma que nos é atualmente possível para a consecução desta tarefa.

Tendo analisado algumas películas cinematográficas que poderiam ser convenientes ao trabalho ora proposto, nos deparamos com o primeiro grande questionamento: que caráter deve ter a película para que logremos êxito?

A resposta, embora não consensual entre os membros do grupo, foi pela escolha de um filme cujo conteúdo nos permitisse uma visão crítica dos moldes de nossas formas sociais vigentes.

Dentre as várias opções das produções cinematográficas que convertem estética e discursivamente os cenários do universo factual para aquele formato socialmente aceito das produções audiovisuais às quais estamos habituados, esbarramos em “Fahrenheit – 11 de Setembro”, um documentário!

Produzido, dirigido e realizado por Michael Moore, “Fahrenheit” é um protesto político contra o atual presidente norte-americano e toda o pragmatismo neoliberal personificado por ele, expoente que é do povo em questão. Venceu Cannes, o maior festival de cinema do mundo e apresentou aos países marginais, ou seja, todos os que não são os Estados Unidos da América (segundo a leitura dos estadunidenses), uma visão absolutamente sectária e oposicionista que opõem as duas fatias da sociedade americana na atualidade: os beligerantes e os alienados.

Foi a riqueza dos exemplos de estereótipos, o discurso permeado de defesas e ataques atitudinais, a inundação de categorizações e o desfile de preconceitos que nos conduziram à escolha de “Farenheit”.

Ademais, ao escolhermos este documentário, produzido e reproduzido pela grande potência econômica e bélica da atualidade, abrimos um imenso leque de possibilidades de análise do discurso dos dominadores e maiores beneficiários do sistema econômico de plena exploração capitalista, o motivador maior das críticas do materialismo-histórico marxista, nascedouro da Psicologia Social Sócio-Histórica.

Eis o preâmbulo das digressões que virão. As premissas sobre as quais ancoraremos o desenvolvimento do presente trabalho.



1. A Identidade Social em duas linhas teóricas

A Identidade Social é um construto comum a diversas linhas teóricas da Psicologia Social e, no presente trabalho, nos interessará sua configuração em duas específicas: a das Representações Sociais (TRS), predominante nos cenários norte-americano e europeu, e a da Psicologia Social Sócio-Histórica preponderante na América Latina.

1.1. A Identidade Social na TRS
Foi com o Serge Moscovici, psicólogo social polonês radicado na França, que o paradigma norte-americano (e sua terminologia inaugurada por Erwing Goffman), que reinou absoluto na Psicologia Social foi substancialmente enriquecido e transformado.

Até a propositura do eminente polonês, a Psicologia Social baseava-se na perspectiva intrapsiquica, ou seja, o fenômeno social era visto como a soma das percepções individuais dos sujeitos que compunham determinado núcleo social isolado para fins de pesquisa.

Com a Teoria das Representações Sociais, uma releitura com aprofundamento e aperfeiçoamento do que já haviam produzido Kurt Lewin, Gordon Allport, Solomon Asch, Fritz Heider e outros, Moscovici reifica um fenômeno dado por natural e desprezível no âmbito das ciências que tratam das relações sociais ao preconizar que:

“conceitos que operam em grandes profundidades parecem necessitar mais de cinqüenta anos para penetrar as camadas mais baixas da comunidade científica. É por isso que muitos de nós estamos apenas agora começando a perceber o sentido de certas idéias que estiveram germinando na sociologia, psicologia e antropologia, desde o limiar desse século.” (Moscovici, 1984b:941).

E é neste escaninho prenunciado por Durkheim, Weber, Marx (na sociologia), sondado por Bronislau Malinowski e buscado por Wundt e outros psicólogos das primeiras gerações, que se desenvolverá a Psicologia Social Européia, notadamente, as da Escola de Bristol (Tajfel, Sherif, Turner e outros), e a Escola de Genebra (Doise, Deschamps e outros), sempre baseadas no pioneirismo de Moscovici e seus questionamentos decorrentes do frenesi psicanalítico na França dos anos de 1960.

Desta forma, temos que as representações sociais:

“designam formas de entendimento largamente partilhadas por um grupo fortemente estruturado (uma nação, um partido, uma igreja), e que estruturam o grupo. Estas representações são uniformes, indiscutíveis e coercivas (por exemplo, a representação do indivíduo como uma entidade autônoma e livre). (VALA, 2004, pg. 463).

Por paradoxal que possa parecer a afirmação de Vala, é da representação social, portanto, que emerge o sujeito, ainda que esta própria sociedade preconize que não há similaridade absoluta entre seus componentes, ou seja, ainda que ela proponha que o ser humano é um ser singular, individual e incomparável.

Melhor elaboração para este conflito essencial nos dá Daniel Bar-Tal ao sustentar que “a resposta à pergunta <> encerra a resposta a uma outra pergunta: <<>>” (Bar-Tal, 1990, apud Vala, 2004, pg. 498).

Assim e, para concluir este tópico, podemos tipificar a Identidade Social na perspectiva da Teoria das Representações Sociais, como uma construção indissociável ao caráter grupal do ser social.

O movimento de adesão, pelo sujeito, aos grupos sociais de seu meio tem por pressuposto a aceitação de suas estruturas categoriais e suas derivantes estereotípicas, provocando no sujeito a percepção de pertença e a adoção de atitudes que implicarão em suas conseqüentes valorações.


1.2 A Identidade Social na Psicologia Social Sócio-Histórica

O paradigma sócio-histórico na Psicologia latino-americana é resultado de amplo processo de penetração do ideário marxista neste continente em meados da década de 1970, reflexo da ainda tímida abertura política e econômica do bloco socialista europeu e asiático que permitiu o contato com novas formas de pensamento na Psicologia, notadamente, com Lev Vygotsky e seus parceiros.

Vivendo em um ambiente estruturado de acordo com o ideário que orienta para o percebimento das relações humanas como o resultado histórico da dialética das classes visando o controle das forças de trabalho e, conseqüentemente, do monopólio do poder, os teóricos da Psicologia russa desenvolveram toda uma escola de pensamento que apontava para o enquadramento do ser humano através do método materialista-histórico.

Adaptando-o para o viés condizente com o marxismo, qual seja da superação das formas individualistas de percebimento do humano e o realce da coletividade como forma “natural” e elementar de existência, chegou-se à designação da Psicologia sócio-histórica, onde o humano é caracterizado por produto e produtor de um meio social marcado por sua significação cultural e histórica e denotado como condicionado pela mediação econômica das relações interpessoais.

É isto que nos preceitua Kohl ao afirmar que “a idéia do ser humano como imerso num contexto histórico e a ênfase em seus processos de transformação também são proposições muito importantes no ideário contemporâneo” (KOHL, 1997, p.14).

Note-se, convenientemente, que os “processos de transformação” aos quais a autora se refere, são aqueles realizados pelo humano no meio ambiente através do trabalho, afirmativa na qual somos embasados por Cristina Machado de Oliveira que, ao analisar Marx, assevera que:

Uma outra visão do trabalho, a qual ultrapassa o sentido antropológico, é de cunho teórico-gnosiológico, isto é, o trabalho social aparecendo como uma categoria da teoria do conhecimento. Esta implica numa inversão da teoria do conhecimento tradicional, onde a relação sujeito-objeto não é mais abstrata; é antes de tudo, uma ligação prática construída no e pelo trabalho. Assim, o trabalho é tido com um significado concreto, de transformação da realidade.

Na Psicologia Social Sócio-Histórica, portanto, o humano não deve mais ser tido como o sujeito dotado da individualidade secular que se erigiu a partir das revoluções de Lutero e Calvino e foi lapidada durante séculos até alcançar sua transcendência para o abstrata em Kant e, finalmente – para nossos propósitos, sua objetividade material em Marx.

O ser humano de Vygotsky, Luria e Leontiev está assentado na constatação de que “o funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior, as quais desenvolvem-se num processo histórico.” (KOHL, 1997,p.23).

O que justifica a existência de uma Psicologia Social Sócio-Histórica como alternativa às outras linhas teóricas estabelecidas – com ênfase para a Teoria das Representações Sociais, é sua proposição de que só serão factíveis os processos psicológicos intrapsiquicos através de sua precedente significação social, ou seja, o humano só será capaz de se perceber como uma entidade individual e dicotômica do meio após receber as devidas ferramentas de seu meio social.

Se para as Representações Sociais o humano adere a um sistema socialmente dado, para os sócio-históricos o humano só existirá porque o meio o concebe, concede-lhe uma identidade e a instrui.

2. Fahrenheit – 11 de Setembro (Sinopse)

No documentário Fahrenheit – 11 de Setembro (premiado como o melhor filme do ano de 2004 no Festival de Cannes – França), o renomado Michael Moore (ganhador do Oscar de melhor documentário em 2003 com Bowling for Columbine), busca um enfoque investigativo e crítico para a política neoliberal norte-americana, apresentando ao público uma versão alternativa que pretende desvendar as reais motivações econômicas que levaram aos atentados terroristas contra os prédios do World Trade Center, em Manhattan – Estados Unidos da América, no ano de 2001 e das represálias estatais contra o Afeganistão e, principalmente, contra o Iraque.

A película nos interessa, sobretudo, por deslindar a estratégia de manipulação do poder e de convencimento do imenso contingente de governados para a necessidade de retaliações violentas contra alvos fixados artificialmente, sob a bandeira de uma cruzada “mundial” contra nações inteiras tipificas como “terroristas” e “contrárias à liberdade”.

Foi assim que, após os ataques que deixaram cerca de três mil mortos nos dois prédios do World Trade Center – e mais algumas dezenas de corpos na investida contra o prédio das centrais militares norte-americanas, conhecido como Pentágono, o governo americano se mobilizou para azeitar suas máquinas de propaganda e guerra, duas das grandes locomotivas da maior economia mundial. Mas como poderia nos interessar na seara da Psicologia Social?

A resposta a esta pergunta, segundo debate dos membros do grupo de trabalho, resta elementar. Guerras implicam em mobilização e apoio. Não se pode lançar toda uma nação a uma luta sem que haja a convicção de que, em primeiro lugar, há um inimigo a se combater e, não menos importante, há um risco em potencial que justifica a luta.

Neste sentido, o filme é prodigioso em fontes que demonstram, inequivocamente, os esforços governamentais para personificar – ainda que de forma absolutamente intangível, o inimigo e, sobretudo, seu potencial em causar danos ao grupo que se dispõe a guerrear.

2.1. Fahrenheit – 11 de Setembro e a TRS

Com a investida de um grupo de terroristas contra alvos civis em solo norte-americano, foi gerada a sensação de insegurança. Todos os habitantes daquele país julgavam razoável considerar que estavam passíveis de serem atacados. O papel do governo, neste caso, foi o de potencializar esta sensação.

Sob a perspectiva da Teoria das Representações Sociais, configuramos a situação como a oposição, então, de dois grupos distintos. De um lado, temos o grupo dos atacados – os americanos e, do outro, os inimigos terroristas.

Para o convencimento endogrupal as variáveis não nos parecem muito difíceis de identificação. Com o ataque transmitido em tempo real para todo o mundo e a reação de plena impotência e fragilidade dos telespectadores, havia um cenário indiscutivelmente favorável para a disseminação do medo.

Sua potencialização viria com a atuação de agentes que gozavam de autoridade e credibilidade no endogrupo, ou seja, seus governantes e a mídia, grande formadora de opiniões e determinadora de atitudes da atualidade.

O presidente norte-americano, no momento dos ataques, visitava uma escola primária no estado da Flórida. Estava sentado diante de uma platéia de crianças que tinham entre cinco e seis anos de idade quando foi informado por seus assessores de que “o país estava sob ataque terrorista”.

Ainda que somente alguns minutos tivessem decorrido desde que o primeiro avião atingira um dos prédios do World Trade Center, a fala do assessor já demonstrava a repercussão do conteúdo propalado pelos meios de comunicação e a versão extra-oficial do ataque.

Não se tratava, pois, de um “acidente”, um “incidente” ou um episódio isolado. O choque dos aviões contra prédios comerciais norte-americanos, nos dizeres da mídia e na repercussão dos assessores do presidente que estavam milhares de quilômetros distantes do local onde se davam os ataques, eram de antemão, fruto da ação terrorista contra a “nação norte-americana”.

Nos pronunciamentos que se seguiram ao ataque, as autoridades deram o tom de condução das percepções. Foi assim que, alguns dias depois se deu início à caçada antiterrorista, anunciada em bom tom pelo alto escalão do governo norte-americano, como Donald Ramsfeld, secretário de Segurança ao dizer que “entramos no que pode muito bem vir a ser as condições de segurança mais arriscadas que o mundo já conheceu.”

Temos, então, uma situação extremada (como é o caso da grande maioria das situações de conflitos bélicos). Para efeito de apreciação sob os construtos da Teoria das Representações Sociais, os americanos serão aqui classificados como endogrupo e os terroristas como o exogrupo.

O líder do endogrupo foi à mídia dizer, exaustivamente, que “o mundo mudou depois de 11 de Setembro. Mudou por que não estamos mais seguros” (George W. Bush), e os meios de comunicação o acompanharam exemplarmente para amplificar os efeitos dessas falas.

Os grupos categoriais não mais existiam no endogrupo. Não haviam feministas, homoeróticos, negros, brancos, amarelos, deficientes ou normais, apesar de saber que tratamos de uma nação marcada profundamente pelo cunho separatista e excludente.

É evidente que tratamos aqui do que Moscovici chamou de universos referenciais, onde circulam as ciências, a objetividade ou as teorizações abstratas. [1]Neste universo de ancoragem e objetivação, emergem aquelas duas categorias possíveis já referidas: a dos norte-americanos unidos contra o outro grupo, superficialmente identificado como um mal que ainda não fora personificado, portanto, carecia de um estereótipo definido: os “terroristas”.

Henri Tajfel, judeu polonês e grande expoente da Psicologia Social da escola de Bristol, nos ensina que estereótipos são generalizações simplificadores e necessárias:

“a preservação do sistema de categorização e das conotações valorativas que lhe estão associadas, e que são transmitidas pela cultura e pelos valores dos grupos de pertença, é conseguida através do tratamento de critérios classificatórios, como homem-mulher, branco-negro, inglês-francês (...) e que validam um conhecimento ‘subjetivo’ da realidade facilitador da integração dos indivíduos...” (AMÂNCIO, Lígia in VALA, 2004, pg. 392).

E foi pela simplificação e associação que a intangível categoria dos “terroristas”, foi manipulada habilmente para se transformar, num primeiro instante, em árabe e, de forma mais focada, em árabes iraquianos.

A manipulação ora aventada se deu pela difusão do medo. A escala de risco, criado pelo governo americano, aponta níveis que variam de alarme total à normalidade, embora as autoridades sempre mantenham os níveis de alerta nas camadas mais altas da escala de atenção, com os órgãos oficiais (Federal Bureau of Investigation), apontando riscos de ataques com “canetas-bomba”, “aeromodelos explosivos”, “líquidos instáveis” e outras fantasias cinematográficas aberrantes.

A prática da manutenção do medo é eficiente na manutenção do estado de vigília constante, segundo Kim McDermott, psiquiatra e congressita norte-americano que assevera que “o medo funciona. O povo amedrontado faz qualquer coisa. Você faz com que sintam medo criando uma aura de ameaça eterna. Eles (a classe dirigente) nos manipulam.”

Não poderia haver maior prova da assertividade das palavras de McDermott que a impressão de pessoas entrevistadas por Michael Moore na pequena Tappahannock, cidade-vilarejo com pouco mais de dois mil habitantes. Uma senhora de meia-idade, não identificada no filme, afirma que “quando olhos para as pessoas penso: óh, meu Deus. Será que pode ser um terrorista?”, e um borracheiro afirma que tem medo e que “não se deve confiar em ninguém que não se conheça e nem se deve confiar totalmente nem nas pessoas conhecidas.”

O combate aos inimigos norte-americanos, neste caso, começou através de práticas que visavam a instalação de uma intermitente sensação de insegurança. Neste sentido, a maior contribuição para o estado de alerta foi a aprovação quase unânime no Congresso norte-americano, do que acabou sendo chamado de Decreto Patriota, um pacote de leis que cassou direitos civis elementares e restringiu a privacidade dos indivíduos, permitindo ao governo esquadrinhas a vida de quem quer que fosse sem autorização judicial ou maiores burocracias.

Ainda assim, as medidas tiveram grande adesão do grupo e apoio dos partidos de oposição aos dirigentes. Nas ruas, Michael Moore entrevistou pessoas e colheu depoimentos como a de uma jovem que dizia que: “(o decreto patriota) é, sem dúvida, triste, mas tem que ser feito.”

A sensação de insegurança é indispensável para unir o grupo em torno de uma questão que deve ser consensual. Entretanto, o governo norte-americano, apoiado por seu povo, não poderia lançar uma ofensiva indistintamente contra todos os árabes do mundo. Inimigos invocam materialidades. O próprio conceito de inimigo invoca a necessidade de personificação.

Façamos um pequeno exercício de construção de estereótipos para exemplificar seu caráter generalizante e simplista. Imagine uma conversa entre um influente dirigente norte-americano e sua comunidade.

- Quem são os terroristas? – São, inequivocamente, árabes. E quem são os árabes? – São os habitantes do Oriente Médio. – Bombardearemos, então, todo o Oriente Médio? – Não! Há lá mais de uma dezena de países, inclusive, muitos amigos de nosso regime e fornecedores de capital e insumos para nossa economia. – E quem são, então, os árabes que não mantêm relações amistosas com o povo norte-americano? – São iranianos e iraquianos. – A quem devemos atacar? Onde estão os terroristas? – Não sabemos ao certo. Os iranianos são hostis, mas não têm potencial bélico ou econômico que nos afete. – E os iraquianos? – São igualmente hostis, porém, detêm imensas reservas de petróleo. Nossa economia enfrenta uma crise moderada há mais de duas décadas por conta dos altos custos do petróleo e do consumo doméstico desenfreado. – Então, são hostis e ainda prejudicam nossa economia? Esses iraquianos são uns “terroristas”.

A guerra travada pelos americanos contra o regime iraquiano que invadiu o Kuwait no início da década de 1990 e terminou sem mudança no status geopolítico da região, recrudesceu. As autoridades norte-americanas passaram a insistir (contradizendo o que haviam afirmado a menos de dez meses), que o Iraque possuía grande arsenal de armas químicas capazes de causar grande destruição em solo americano.

A associação entre terroristas e iraquianos foi difundida e devidamente assimilada e repetida por todos os cantos dos Estados Unidos da América e, meses depois, a investida militar que dura até nossos dias, arrasou todo o Iraque, matando indistintamente. Os dados oficiais divergem como em qualquer situação de conflito, porém, as autoridades iraquianas (governo empossado pelos norte-americanos), estimam em cento e cinqüenta mil o número de mortos civis desde o início da guerra (é inimaginável como se produzem tantos terroristas no Oriente Médio), embora a Organização das Nações Unidas defenda que o número real de mortos em função dos ataques seja, no máximo, inferior a cem mil. Talvez tenhamos aí um bom indício, factual, de porque os iraquianos terem construído para si o estereótipo do povo norte-americano como “terroristas” que buscam controlar suas reservas de petróleo.

A sustentação da ofensiva é, nitidamente, midiática e bem conduzida, o que nos remete aos estudos de comunicação persuasiva. Para Clifford e Walster (1973), os comunicadores bonitos são mais atraentes e inspiram confiança, além de serem mais influentes do que comunicadores menos atraentes (Chaiken, 1979). Ditas da forma correta e por uma personalidade que esteja próxima ao grupo (Kelley, 1955), as palavras de George W. Bush soam como “naturais”, ainda que ele diga que é “o presidente da guerra. Tomo decisões sobre política externa com a guerra em mente.”

Esperamos, com isto, ter demonstrado como se dá o processo da construção da identidade social na teoria das Representações Sociais, com a adesão dos sujeitos aos conceitos vigentes ao seu meio social e a tomada de atitudes baseada nas construções coletivas. Embora tenhamos usado um exemplo extremado que envolve algo em torno de duzentos e trinta milhões de pessoas (a população americana, os países aliados e a população iraquiana), é importante salientar que os estudos da TRS se deram, principalmente, em ambientes de microgrupos e que os conceitos são aqui generalizados.

2.2. Fahrenheit – 11 de Setembro e a Psi Social Sócio-Histórica

Já na perspectiva da Psicologia Social Sócio-Histórica, teremos que considerar os aspectos discordantes com relação à TRS. Se para esta as representações sociais são entidades autônomas (que em certo ponto lembram Durkheim e suas representações coletivas) para aquela a estruturação do meio em que os humanos estão inseridos é materialista-histórica, ou seja, conduzida sob o estigma da luta pelo controle dos meios de produção econômica e embate das classes sociais (dialética), e que a compreensão dos fatos humanos só é possível se considerados à luz da significação histórica que lhe dá sentido.

Como visto em Vygotsky, toda relação do sujeito com o meio é mediada por instrumentos e signos dados sócio-culturalmente, visando a transformação da natureza pelo trabalho.

Portanto, nos sócio-históricos teremos o humano como constituído e constituinte da realidade objetiva que o cerca, através da utilização daqueles instrumentos e signos que tiveram sua gênese como demanda por organização, demanda de um problema psicológico dado.

Neste aspecto a apreciação de Fahrenheit ganha contornos atraentes e repletos de significações para nossos contemporâneos, pois, como asseverado anteriormente, a própria guerra contra os terroristas iraquianos (foco do filme), é nada mais que uma manobra pelo controle do insumo mais importante para a manutenção do poder econômico norte-americano e do padrão de consumo naquele país.

Todo o discurso de defesa da liberdade, de restabelecimento da segurança e da difusão do padrão moral egocêntrico cultivado nos Estados Unidos da América passa a ser aos olhos da Psicologia Social Sócio-Histórica, mera retórica que acoberta aquela dialética marxista.

Dado o iminente risco de adotarmos o discurso pertinente ao ideário de Karl Marx que já não goza de tanto prestígio quanto nas épocas românticas da militância política do pós-guerras em todo o mundo, preferimos a reorientação de nossas digressões.

A individuação das histórias, portanto, passa a ser conveniente para aqueles que se querem crer singulares, muito embora todo o cenário analisado com isenção remeta à conclusão de que há, sim, um traço comum muito mais relevante e determinante de conduta do que se quer reconhecer e isto é chamado por muitos de cultura.

A estranheza causada nas pessoas que têm por “natural” o raciocínio respaldado no Iluminismo que entronou a individualidade e depois o endeusou em Nietzsche, pode ser de difícil clarificação, mas não é incompreensível sob a luz da racionalidade da proposta sócio-histórica que propõem o humano como construído e estabelecido como uma instituição temporal, portanto, mutável e contingente às necessidades e possibilidades do seu tempo, como nos permite aferir a leitura enviesada de Michael Moore no filme aqui analisado.


3. Conclusão

Apesar da aparente adoção de uma postura favorável ao postulado sócio-histórico, nos é evidente que não temos subsídios para explanar adequadamente sobre o assunto, quiçá, enveredar em juízos de valor quanto à supremacia de um modelo teórico sobre outro.

Como bem nos ensina Serres:

“Em ciência, moralidade ou política, assim como nas artes, às vezes nos sentimos inclinados a pronunciar uma sentença que, a despeito de ser prima facie falsa, parece iluminadora e frutífera. Tais sentenças são, no início de suas carreiras, “meras metáforas”. Mas algumas metáforas são “bem-sucedidas”, na medida em que as consideramos tão atraentes que tentamos torná-las candidatas a crenças, a verdades literais. Fazemos isto redescrevendo a porção da realidade nos termos sugeridos pela sentença nova, surpreendente, metafórica”. (SERES, 1994, p. 124 apud ARENDT, Ronald in MANCEBO, Deise. 2004, p.31).

Temos, então, que a presente análise resta um exercício de construção de saberes e de preambulação de um conhecimento que vislumbramos profundamente preponderante no prosseguimento de nossa formação acadêmica.

Antes de fornecer-nos uma alternativa para a interpretação de uma realidade objetiva que só é apreensível pelos partidários do racionalismo próprio às ciências naturais, este trabalho nos dá a percepção de que sempre há formas de enriquecer reflexões e de elaborar com maior cuidado construções que nos parecem naturais e acabam por se demonstrar anacrônicas, inconvenientes, incompletas e distorcidas.

Por seu caráter introdutório e didático, julgamos a iniciativa indiscutivelmente válida e frutífera.



4. Bibliografia

MANCEBO, Deise et al. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: Aprendizado e Desenvolvimento – um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 2000.

STREY, Marlene Neves et al. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

VALA, Jorge; MONTEIRO, Maria Benedicta. Psicologia Social. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

FAHRENHEIT – 11 DE SETEMBRO. Michael Moore. Estados Unidos da América: Europa Filmes, 2005. DVD, 122 minutos, NTSC, Dolby Digital, colorido, legendado.

[1] OLIVEIRA, Fátima. Psicologia Social Contemporânea. 1998, pg. 108